segunda-feira, 7 de julho de 2014

XI Ciranda de Psicanálise e Arte

O novo milênio começou sob os bons fluidos do século XX, marcado pela liberdade de pensamento, o direito de dizer o que se vê, o que se escuta, o que se experimenta, com as interpretações possíveis a cada um – conquista duramente adquirida pela humanidade, ao longo de dois milênios e duas grandes guerras, marcos do rompimento de pactos fundamentais de tolerância e respeito às diferenças étnicas, sexuais, religiosas, políticas, etc.
Todos esses acontecimentos mostraram que a relação do homem com a palavra defronta-o com os limites da verdade e do saber que a mesma franqueia e faz com que ele se dê conta de que sim, “a vida é sonho” – como bem disseram Shakespeare, Calderón de la Barca, Fernando Pessoa, e tantos outros – mas facilmente ela pode se transformar em pesadelo, em horror inaudito.
Tanto Freud quanto Lacan sustentaram a função do trágico e a importância do cômico na existência humana, como um resultado da simbolização da luta, da tensão entre Princípio do Prazer e Pulsão de Morte. Freud pressentiu a consciência trágica e lançou mão do mito. Lacan desenvolveu seu ensino propondo um retorno a Freud e avançou na teorização a partir da instrumentalização de novos campos de saber. Os dois fizeram da arte uma aliada na pesquisa do inconsciente e suas formações e isso lhes permitiu avançar na teoria e prática da psicanálise, valorizando ao máximo o sentido de humanidade, o tragicômico da existência, o recurso à arte e à produção científica como refúgios contra o mal-estar na civilização.
A arte é, hoje, um dos poucos campos a oferecer resistência ao apagamento do trágico, mostrando que a loucura e “a insustentável leveza do ser” podem e devem conviver, pois fazem parte do humano.

“A natureza da loucura é ao mesmo tempo sua útil sabedoria; sua razão de ser consiste em aproximar-se tão perto da razão, ser-lhe tão consubstancial que formarão, ambas, um texto indissolúvel, onde só se pode decifrar a finalidade da natureza: é preciso a loucura do amor para conservar a espécie; são precisos os delírios da ambição para a boa ordem dos corpos políticos; é preciso a avidez insensata para criar riquezas. Desse modo, todas essas desordens egoístas penetram na grande sabedoria de uma ordem que ultrapassa os indivíduos: Sendo a loucura dos homens da mesma natureza, ajustam-se tão facilmente num conjunto que serviram para constituir os mais fortes elos da sociedade humana: disso é prova esse desejo de imortalidade, essa falsa glória e muitos outros princípios sobre os quais marcha tudo que se faz no mundo [...] A loucura é o lado desapercebido da ordem, que faz com que o homem venha a ser, mesmo contra vontade, o instrumento de uma sabedoria cuja finalidade ele não conhece; ela mede toda a distância que existe entre a previdência e a providência, cálculo e finalidade. Nela se oculta toda a profundidade de uma sabedoria coletiva e que domina o tempo.”
                       (Foucault, M. “História da Loucura”, São Paulo, Perspectiva S.A., 1972, p. 179)

Na edição de 2014 da Ciranda, tomamos a arte e a psicanálise como duas poderosas ferramentas que poderão nos permitir uma aproximação crítica do que chamamos ‘desumanização’, colocando em questão o conceito de loucura e a relação com o inconsciente. Trata-se de romper com a obrigação de um sentido único para a existência e valorizar o livre pensamento, nos limites da relação com o semelhante. Daí a escolha do famoso quadro de Frida Kahlo, Moisés o Núcleo solar, pintado em 1945, ano de finalização da Segunda Guerra Mundial, para ilustrar nosso cartaz. Ele é um testemunho dos efeitos surpreendentes da relação do sujeito com seu inconsciente, seu tempo e com a miséria do humano. A artista criou essa obra após a leitura de Moisés e o monoteísmo, de Freud – o livro lhe causou forte inquietação e angústia, fazendo-a sonhar e a partir daí pintar o quadro em apenas três meses!