O novo milênio
começou sob os bons fluidos do século XX, marcado pela liberdade de pensamento,
o direito de dizer o que se vê, o que se escuta, o que se experimenta, com as interpretações
possíveis a cada um – conquista duramente adquirida pela humanidade, ao longo
de dois milênios e duas grandes guerras, marcos do rompimento de pactos
fundamentais de tolerância e respeito às diferenças étnicas, sexuais,
religiosas, políticas, etc.
Todos esses
acontecimentos mostraram que a relação do homem com a palavra defronta-o com os
limites da verdade e do saber que a mesma franqueia e faz com que ele se dê
conta de que sim, “a vida é sonho” – como bem disseram Shakespeare, Calderón de
la Barca, Fernando Pessoa, e tantos outros – mas facilmente ela pode se
transformar em pesadelo, em horror inaudito.
Tanto Freud
quanto Lacan sustentaram a função do trágico e a importância do cômico na
existência humana, como um resultado da simbolização da luta, da tensão entre
Princípio do Prazer e Pulsão de Morte. Freud pressentiu a consciência trágica e
lançou mão do mito. Lacan desenvolveu seu ensino propondo um retorno a Freud e avançou
na teorização a partir da instrumentalização de novos campos de saber. Os dois fizeram
da arte uma aliada na pesquisa do inconsciente e suas formações e isso lhes
permitiu avançar na teoria e prática da psicanálise, valorizando ao máximo o
sentido de humanidade, o tragicômico da existência, o recurso à arte e à
produção científica como refúgios contra o mal-estar na civilização.
A arte é, hoje,
um dos poucos campos a oferecer resistência ao apagamento do trágico, mostrando
que a loucura e “a insustentável leveza do ser” podem e devem conviver, pois
fazem parte do humano.
“A natureza da loucura é ao mesmo tempo sua útil
sabedoria; sua razão de ser consiste em aproximar-se tão perto da razão,
ser-lhe tão consubstancial que formarão, ambas, um texto indissolúvel, onde só
se pode decifrar a finalidade da natureza: é preciso a loucura do amor para
conservar a espécie; são precisos os delírios da ambição para a boa ordem dos
corpos políticos; é preciso a avidez insensata para criar riquezas. Desse modo,
todas essas desordens egoístas penetram na grande sabedoria de uma ordem que ultrapassa
os indivíduos: Sendo a loucura dos homens da mesma natureza, ajustam-se tão
facilmente num conjunto que serviram para constituir os mais fortes elos da
sociedade humana: disso é prova esse desejo de imortalidade, essa falsa glória
e muitos outros princípios sobre os quais marcha tudo que se faz no mundo [...]
A loucura é o lado desapercebido da ordem, que faz com que o homem venha a ser,
mesmo contra vontade, o instrumento de uma sabedoria cuja finalidade ele não
conhece; ela mede toda a distância que existe entre a previdência e a
providência, cálculo e finalidade. Nela se oculta toda a profundidade de uma
sabedoria coletiva e que domina o tempo.”
(Foucault, M.
“História da Loucura”, São Paulo, Perspectiva S.A., 1972, p. 179)
Na edição de
2014 da Ciranda, tomamos a arte e a psicanálise como duas poderosas ferramentas
que poderão nos permitir uma aproximação crítica do que chamamos ‘desumanização’,
colocando em questão o conceito de loucura e a relação com o inconsciente.
Trata-se de romper com a obrigação de um sentido único para a existência e
valorizar o livre pensamento, nos limites da relação com o semelhante. Daí a
escolha do famoso quadro de Frida Kahlo, Moisés
o Núcleo solar, pintado em 1945, ano de finalização da Segunda Guerra
Mundial, para ilustrar nosso cartaz. Ele é um testemunho dos efeitos
surpreendentes da relação do sujeito com seu inconsciente, seu tempo e com a miséria
do humano. A artista criou essa obra após a leitura de Moisés e o monoteísmo, de Freud – o livro lhe causou forte
inquietação e angústia, fazendo-a sonhar e a partir daí pintar o quadro em
apenas três meses!