A vida é sonho,
mesmo para marinheiros insones...
Teresa Palazzo Nazar
1
– A posição trágica frente ao ato
Ao iniciar a leitura de um livro, lançamos
mão do que muitos escritores nomeiam como “fé poética”, isto é, uma disposição
à leitura, ato que demanda um distanciamento do que se passa na vida, uma
entrega e confiança no escrito capaz de, durante certo tempo, conduzir por
“mares nunca dantes navegados” aquele que a ele se entrega.
Para muitos escritores, o que se
repete ao início de uma leitura, como uma introdução, é o que pode capturar a
atenção e a simpatia do leitor pelo texto. “O prazer da escrita desemboca no
prazer da leitura” (KOHAN, 2005, p. 26).
Em seus Escritos técnicos, Freud (1996) assinala que essa espécie de
benevolência é, também, a disposição necessária à instalação da transferência
em uma análise. Pois, afinal, falar para um estranho o que não se diz ao amigo
mais íntimo não é exatamente fácil!
É preciso haver uma pitada de
entusiasmo do lado do analista, para insistir junto ao possível analisando que ele
se deixe conduzir por suas associações, confiar no saber que se libera na fala
endereçada àquele disposto a escutá-lo. Assim, é possível a instauração de uma
cena distinta da vida cotidiana, parecida com a leitura inicial de um livro. O que
organiza a montagem dessa cena é a colocação em ato do desejo inconsciente,
ação regulada não por um saber preconcebido nem pela busca de um bem, mas pela
razão ética na qual a motivação é a mesma que dois mil anos antes do advento da
psicanálise, no século V a.C. fez surgir a tragédia ática. Pois a cena ática
requer uma lógica de três: o ator, o coro e o público, o quarto elemento sendo
o discurso que surge na voz do ator. Na estrutura do inconsciente, a mesma
lógica é encontrada: real, simbólico, imaginário e o sinthoma.
O teatro grego não dizia respeito a um
lazer para amenizar a dureza da vida e as exigências desta. O que estava em
jogo era o ato. Por isso, Lacan vai se
interessar pela tragédia grega na figura do herói trágico e, neste, o desejo capaz
de movimentá-lo. Freud também se
interessou pela tragédia e pelo herói trágico, haja vista ter construído sobre
o Édipo, de Sófocles, o fundamento da estrutura psíquica do neurótico. Para os
gregos, a função desse tipo de teatro era criar uma consciência trágica, fazer
advir o homem trágico que não pode ser subsumido ao cidadão grego, ao que
desempenha uma ou mais funções na pólis. A função da tragédia é, sobretudo,
estrutural, na medida em que pretende que o cidadão se veja em suas relações
com o mundo, com seus pares, com os deuses, mas principalmente consigo mesmo e
com seus atos.
A função de uma psicanálise – levada
até um fim possível – é franquear o acesso do sujeito ao seu desejo, sua ética.
Seu ato é sua perda, já que se trata de se extrair do campo significante, como
resto da operação, equivalendo-se ao objeto de sua causa. Por isso se diz que
ao final da análise há uma cessão de objeto que é o próprio sujeito, resultado
da operação analítica.
Podemos, assim, começar a entender
por que Lacan dá tanta importância à tragédia ática.
A ética trágica coloca em questão o
sujeito em sua perda, tal como a psicanálise.
Trata-se de evidenciar a dimensão
objetal do sujeito onde o desejo não é a causa final nem a primeira do ato que
o inaugura, mas causa a posteriori,
futuro anterior – o Nachtraglichkeit
freudiano.
Se um século depois de seu advento,
a voz da tragédia foi calada por outro modo de pensamento – a filosofia –, a
psicanálise recolocou essa voz em cena, a partir da descoberta do inconsciente,
quando o sujeito é convocado como o herói trágico a se responsabilizar pelo que
o determina (no herói, os desígnios dos deuses; na psicanálise, o desejo), sem
fazer apelo ao saber.
Para sair da posição dependente das
demandas que advêm do lugar onde se encontra identificado e que lhe é
desconhecido (posição paralisante), o sujeito terá que assumir a
responsabilidade, solitária e intransferível, de seu ato. O que está aí
implicado é a injunção de um desejo que responde a leis não escritas, evocadas
por Antígona, a heroína trágica por excelência, pois ela é aquela que subverte
as leis da pólis em nome das leis não escritas dos deuses (VORSATZ, 2013).
Pelo que ela clama? Pela
responsabilidade, a mesma que está tanto para o herói trágico quanto para a
dimensão inconsciente, no que diz respeito à resposta dada ao impulso íntimo mobilizador
do sujeito em seu ato e que o faz decidir e agir em nome de um desejo que se
impõe como condição absoluta. Não é para todos, é verdade, mas quando esta
contingência se apresenta, quando o sujeito faz valer, em ato, a ética que o
mobiliza e que não é resultante de um saber a priori, conceitual, mas da
opacidade oriunda de sua própria perda, é o trágico do “homem que não pensa com
sua alma, mas com seus pés” que se põe em marcha, como disse Aristóteles.
Desse ponto de não retorno, é a
verdade que força passagem no campo do saber. Seu brilho mostra que o
imperativo ético freudiano Wo Es war,
soll Ich werden é o adágio que pode se mostrar quando o homem, diante do
desamparo frente à morte, quando nem mesmo a angústia é recurso, lança-se ao
ato de sua própria perda para sustentar o campo de onde vem.
É nessa condição de resto extraído
de sua própria experiência que um artista pode se lançar ao trabalho. Para
criar uma obra é preciso deixar cair o que sabe, precipitar-se no abismo do
vazio, quando uma verdade até então desconhecida poderá surgir. Nesse sentido,
o artista é objeto de sua arte, já que ele não sabe o que o move, mesmo que conheça
muito bem seu modo de fazer com sua obra. Ele sonha onde seu pensamento é pura
ação, movimento que faz a extração de um objeto outro, distinto da natureza,
criação. Pensamento que se transmuta em escrita, toda obra de arte é a
assinatura de seu autor.
O tempo do pensamento é fugaz! A
vida, em sua transitoriedade, mostra-nos que o sonho de nossos pensamentos,
nossas fantasias, o que e quem somos, tudo se apaga com nossa morte. Mas a cada
vez que uma obra se produz, a cada transmissão operada com o advento de algo
novo, o sonho renasce, mostrando não ser dependente do serviço dos bens, mas
testemunho da presença do desejo que nele se mostra em ato. Para os sujeitos que
não cedem às demandas, heróis de sua própria perda, a escrita é uma imposição
ética. Escrever é abandonar a terra conhecida e deixar-se levar pelo dizer que
brota nas entrelinhas, tal qual o conto interminável de Sheherazade.
Diz-nos Italo Calvino:
“A arte que permite a Sheherazade
salvar sua vida a cada noite está no saber encadear uma história a outra,
interrompendo-a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a
descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo, uma forma de capturar o tempo que
podemos reconhecer desde as suas origens: na poesia épica por causa da métrica
do verso, na narração em prosa pelas diversas maneiras de manter aceso o desejo
de se ouvir o resto. (CALVINO, 2012, p.51)
Literatura é, portanto, vida! E se ela
se presta ao teatro, mais ainda, pois o que se escuta em ato, quando
verdadeiramente há teatro, é a divisão subjetiva, eliminando as certezas do
sujeito, levando-o a se perguntar: “mas não é esse o meu texto?” Não há luto que baste! Falar é fazer o luto do que se
teria sido/tido. Mas não há como recuperar o que nunca se teve, nem nunca se terá...
questão de todo sujeito frente ao seu
destino. Pois, para ser sujeito foi preciso pagar com seu ser. Trata-se de
fazer o luto do lugar da “criança magnífica” aquela que teria sido no desejo
dos pais.
2
– O Teatro do êxtase
Fui achar em Fernando Pessoa, num
livro que até então desconhecia, organizado por Gagliardi – Teatro do êxtase – os fundamentos para
entender a dimensão trágica para o homem que olha seu tempo com certo
distanciamento crítico, já que a loucura do humano existe em cada homem porque
ele não se desgruda de si mesmo, como diz Foucault: “O apego a si próprio é o
primeiro sinal de loucura, mas é porque o homem se apega a si próprio que ele
aceita o erro como verdade, a mentira como sendo a realidade, a violência e a
feiura como sendo a beleza e a justiça” (FOUCAULT, 1978, p. 24).
Quando o homem se desprende da
imagem de si mesmo, a palavra toma a cena, fazendo comparecer um discurso que
lhe devolve a possibilidade de uma enunciação em ato, cerne da decisão trágica,
dimensão também encontrada na experiência analítica.
A peça O marinheiro mostra a clareza de Pessoa em relação ao que é, para
ele, a única realidade, isto é, o teatro da vida. Mas se trata de um drama
estático. Ou seja, um teatro que florescia no século XIX, no qual os diálogos
eram apenas a preparação para os longos intervalos, longos silêncios, cuja
encenação buscava um apelo fortemente simbólico. Resumindo brevemente, era um
teatro inspirado na Antiguidade clássica, nas tragédias de Ésquilo, mas cujo
protótipo de ação dramática encontra-se em Hamlet
de Shakespeare.
Em um manuscrito de 1914, um ano
após ter escrito a peça, Pessoa nos diz:
“Chamo teatro estático àquele
cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não
agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer
têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito
enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro
tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a
progressão e consequência da ação – mas, mais abrangente, a revelação das almas
através das palavras trocadas e a criação de situações [...].
Pode haver revelação de almas sem
ação, e pode haver criação de situações de inércia, momento de alma sem janelas
ou portas para a realidade. (PESSOA, 1973, apud GAGLIARDI, 2010, p. 19)
Essa reflexão se faz viva no texto
de O marinheiro, e nos instiga a lembrar
a questão levantada por Lacan no Seminário
XX, onde ele se pergunta sobre “a relação que poderá haver entre a
articulação que constitui a linguagem e um gozo que se revela ser a substância
do pensamento [...] com o pensamento, se o considerarmos dominado antes de mais
nada pela inércia da linguagem” (LACAN, 1982, p. 151).
Vemos que a relação da linguagem com
o que nela é deriva de gozo – Trieb,
como diria Freud – só pode se mostrar nos intervalos dos ditos. É desses
intervalos que se obtém o efeito poético porque nos leva a pensar com o corpo, pois
é este que sofre o efeito do que se produz – isto é, o gozo.
A peça é ambientada num quarto com
três donzelas veladoras e um caixão sobre uma mesa, onde jaz outra donzela. O
quarto tem o formato circular do palco grego, e nada indica em que época ou local
a cena se passa. Sabe-se tratar-se de um castelo antigo, mas o drama é
imemorial e a cena fora do tempo histórico.
“Ainda não deu hora nenhuma”
(PESSOA, apud GAGLIARD, 2010, p.51) é a primeira fala da primeira veladora. Ela exibe, de saída, o valor estático atemporal da
cena. A morte é o centro do drama e as falas das veladoras, tal como
Sheherazade, pretendem driblar a morte contando suas histórias:
“Segunda
veladora: Contemos
contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só
viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes...
Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um
sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o
podia estar tendo... Mas o passado – por que não falamos nós dele?
Primeira
veladora: O
passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho
para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é qualquer
coisa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?” (idem,
p. 54 e 55)
“Terceira
veladora: O que
eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui!... Eu
vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem.
Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado
de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos
meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando
eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles,
independente do meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte,
do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...” (idem, p. 58 e
59)
A peça
se desenrola e nos mostra o autor resgatando do teatro grego a unidade de
espaço e tempo, mesmo que pareça não fazê-lo, pois a ação dramática transcorre
na torre de um castelo, durante uma madrugada. Ela também respeita a
determinação de três personagens em cena... a quarta está morta. E o que está simbolicamente
ali representado? Vemos que as veladoras são o espectro de uma única personagem
conversando consigo mesma. E quem seria a morta? Podemos pensar tratar-se do
próprio corpo desta personagem única, corpo habitado pela linguagem, que só tem
vida quando animado pela fala.
O marinheiro é o primeiro texto de
Pessoa publicado na revista que inaugurou o modernismo em Portugal, Orpheu, e nos apresenta as dúvidas
existenciais de seu autor, em sua incansável investigação sobre suas próprias emoções
e pensamentos convertidos em arte.
“Tornei-me uma figura de livro,
uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que
se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o
desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer de tanto recompor-me
destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e
deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora
senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto meu próprio
rosto que me contempla contemplá-lo.” (PESSOA/SOARES, 1984, p. 201)
Para
Fernando Pessoa, o “império dos poetas” viria salvar sua terra, Portugal. Os
heterônimos vêm encher esta mesma terra de nomes que lhe faltam para a glória
de sua poesia. Seu país, terra triste onde teria vivido uma infância penosa,
com muitas perdas, é, também, para onde endereça seu olhar. Seus personagens
levam-no a encontrar-se com sua própria autoria.
Uma
das veladoras sonha um sonho de marinheiro. A peça inclui um “sonho de um
sonho”, criação da imaginação do poeta. O marinheiro que surge do sonho da
segunda veladora permite, ao poeta, fazer da pátria sonhada uma ficção
verdadeira em que “navegar é preciso, viver não é preciso”, como Pessoa dirá
depois.
3
– Desejar é navegar...
O
marinheiro
não é apenas uma peça teatral. Com ela, o teatro da vida se apresenta como uma
primeira e vigorosa tentativa de mostração do autor de como entender o que é,
para ele, o teatro:
“Em O marinheiro, o teatro assume o estatuto de metáfora mais ampla do
jogo ilusório a que se destina o conhecimento de categorias outrora
transparentes, tornadas instáveis na modernidade: o autor e a personagem, a
identidade e a alteridade, a ficção e a realidade.” (GAGLIARDI, 2010, p. 45)
mas
eu acrescentaria a esta afirmação de Gagliardi que a peça cumpre sua função de
teatro porque mostra o invisível: “a verdade e o acontecimento” (LACAN, 1988,
p. 321). A verdade, sempre dita às meias, é o que comparece no ato do herói
como o que ele não sabe, mas não pode recuar. Essa verdade, que é o dizer do
discurso, é o acontecimento, o significante introduzido no mundo pelo ato de
dizer.
Como explicar isso? Ora, como bem lembra
Lacan, na tragédia não há exatamente um acontecimento:
“o herói e o que está a sua volta
situam-se em relação ao ponto de visada do desejo. O que ocorre são
desabamentos e amontoamentos de diversas camadas da presença dos heróis no
tempo. É isso que fica indeterminado – no desabamento do castelo de cartas que
a tragédia representa, uma coisa pode fixar-se antes de uma outra, e o que se
reencontra no final quando se desvira o total pode apresentar-se de diversas
maneiras.” (idem, ibidem)
Nesse movimento incessante da presença e
apagamento da presença do herói há mostração de um lugar vazio, onde novamente
a ação pode se dar. Mas que ação é essa? Trata-se do discurso. Só ele pode
mostrar que a ação que faz valer a condição humana é o dizer. Este, ao mesmo tempo
em que afirma a vida, lembra a presença da morte, pois só se está vivo naquilo
que se diz.
O silêncio entre o que se diz e o que
fica por dizer marca o ritmo da batida do que no significante permite que haja
mundo e, neste, a cena na qual o homem se afirma sobre a natureza ao mesmo
tempo em que se submete à sua condição de mortal. Como é possível dar-se conta,
ascender à sua própria relação com a morte? Lacan responde:
“pela virtude do significante e
sob a forma mais radical. É no significante, e uma vez que o sujeito articula
uma cadeia significante, que ele sente de perto, que ele pode faltar à cadeia
do que ele é [...] a função do belo sendo precisamente a de nos indicar o lugar
da relação do homem com sua própria morte, e de nos indicá-lo somente num
resplandecimento.” (idem, p. 354)
O belo, que na Grécia antiga nasce
com o teatro, na Idade Média reaparece no amor cortês, no Renascimento se
mostra com a exaltação da figura humana e da natureza-morta, se repete no
momento em que Freud inventa a psicanálise e extrai da arte o exemplo mais
radical da função do significante: a existência do inconsciente.
“Freud é o primeiro a articular
com audácia e potência que o único momento de gozo que o homem conhece
encontra-se no lugar mesmo em que se produzem as fantasias, que representam
para nós a mesma barreira em relação ao acesso a esse gozo, a barreira onde
tudo é esquecido.” (idem, p. 358)
Em O marinheiro, Fernando Pessoa nos lembra, através de suas
personagens, que a vida só há pelo que se diz. A morte está sempre presente no
centro do discurso, por isso, só há desamparo, nada é necessário além do dizer.
Só por dizer algum êxtase pode ser tocado. O êxtase é imóvel, quer dizer, ele
toma o corpo sem que nenhum movimento deste seja necessário. É uma pequena
morte marcada no corpo, encontro de Dionísio e Hades.
Essa experiência nos mostra o que
Fernando Pessoa diz em seu teatro estático mas que poderíamos chamar de
extático, já que inclui um êxtase do encontro com a palavra escrita. Pessoa nos
faz lembrar que a vida é a presença da fala no corpo; é ela que nos faz vivos
para o discurso, sonho de sermos o que pensamos.
Pessoa nos indica o caminho do que é
preciso escutar de nossa condição, isto é, que “a vida é sonho”, que a
castração está no horizonte de nossa fala-ação, que não há felicidade alguma e
que, ao final, está nossa perda, já que a vida depende de podermos dizer; entre
cada palavra há um silêncio mortífero. Numa análise é preciso falar, ir até o
umbigo do dizer, para dar-se conta de que não há a última palavra e que,
portanto, é preciso renunciar a tudo saber. Nessa direção caminha toda e
qualquer análise levada a termo. Não se pode ter a última palavra, assim como
não se pode ser tudo para o outro. A castração preside a entrada do sujeito no
campo da fala e da linguagem e, ao fim da análise, repete-se essa operação de
perda, quando o sujeito se equivale ao objeto que é sua causa.
“Será no mesmo nível que a
fantasia do falo e a beleza da imagem humana têm seu lugar legítimo? Ou há,
pelo contrário, entre eles uma imperceptível distinção, uma diferença
irredutível? [...] no termo derradeiro, a aspiração do paciente se quebra numa
nostalgia irredutível sobre isto, que o falo, de modo algum ele poderia sê-lo,
e que para não o ser, ele só poderia tê-lo na condição do Penisneid na mulher, da castração no homem. Eis o que convém
relembrar no momento em que o analista se encontra em posição de responder a
quem lhe demanda a felicidade.” (idem, p. 359)
Pode-se, então, entender por que o
homem aceita os interditos de bom grado, pois eles, ao contrário de ameaça, são
garantia de proteção contra o pior.
A problemática do mal-estar na civilização
apontada por Freud se apresenta pelo viés da instância moral do Supereu, isso que exige de nós os
maiores sacrifícios, mas que não é, de fato, ameaça. O que o homem evita a todo
custo é a responsabilidade sobre seu desejo e, na sequência desta vertente, o
que nele é sua própria perda; ele prefere trair sua condição de sujeito, não
quer ser o único responsável por seu desejo e pelo ato que o sustenta; prefere
manter seus bens, os objetos de pequenos prazeres. Mas não há bem a ser
encontrado, senão como trapaça!
O que está no fundo da condição
humana e que o homem evita a todo custo com suas idealizações, suas
identificações, sua fixação no tempo do outro, é o que Freud nos apresenta
quando fala do desamparo, Hilflosigkeit. Ao dar-se conta de que não é
possível esperar ajuda de ninguém para o que é responsabilidade de cada um
sobre seu desejo, o sujeito toca o limite em que nem mesmo a angústia pode
protegê-lo e, portanto, não há perigo no nível da experiência última, mas
decisão!
Chegar ao limite em que se
descortina o que se é e o que não se é, onde se mostra para que servem os bens
que são as paixões e o que elas evitam, exige do sujeito que ele decida se quer
o que deseja. Avançar aí é aceitar não apenas a solidão, mas o que se mostrou
como vazio na via do desejo.
Lacan nos indica, ao dizer que o
herói trágico é aquele que “parte sem deixar rastros” (idem, p. 366), que ele
só age porque incorporou a lei que o faz não-ser: me phynai quer dizer de
preferência, não ser.
“Esta é a preferência na qual se
deve terminar uma existência humana, a de Édipo, tão perfeitamente acabada que
não é da morte de todos que ele morre, ou seja, de uma morte acidental, mas da
morte verdadeira, em que ele mesmo risca seu ser. É uma maldição consentida,
dessa verdadeira subsistência que é a do ser humano, subsistência na subtração
dele mesmo da ordem do mundo. Essa atitude é bela, e como se diz no madrigal,
duas vezes bela por ser bela.” (idem, p. 367)
O passo a ser dado pelo herói é
aquele do despojamento dos bens, do desinteresse pelo que é. Posição ética na
qual a topologia do desejo se apresenta como vazio, sem fantasia, sem recurso,
sem nenhum véu. Momento de liberdade para tomar sobre seu corpo o valor do
ser-para-a-morte, inscrito no me phynai
de Édipo.
Lacan nos faz lembrar que estamos
todos no mesmo ponto em que ele diz, com Freud, que a função do pai é ser pai
morto. No entanto, o homem nada quer saber sobre isso. O que ele quer é o que
ele menos deseja. Porque o que ele quer é, para o bem e para o mal, que um pai
o garanta, que alguém sustente uma imagem que o proteja da verdade que ele
teme. Renunciar aos bens e ao poder é assumir o que os antigos sabiam e nos
deixaram como legado. Não é à toa que Homero e Tirésias são cegos... É para
advertir-nos de que a fascinação da imagem nos ilude, nos aprisiona numa
consistência de ser e, por isso, nos aparta da verdade, nos faz acreditar que
não é preciso responsabilizar-se, que alguém “segura a barra” por nós. Esse é o
caminho da culpa, onde nenhum bem pode proteger o sujeito das consequências de
haver cedido em seu desejo:
“Fazer as coisas em nome do bem,
e mais ainda em nome do bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar
não apenas da culpa, mas de todo tipo de catástrofes interiores. Em particular,
isso não nos abriga certamente da neurose e de suas consequências. Se a análise
tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema
inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num
destino particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele
torna a voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma certa trilha, para
a trilha do que é propriamente nosso afazer.” (idem, p. 383)
A
trilha do desejo é nosso afazer, esse precipício entre o que se diz e o que
fica por dizer, entre um significante e outro, curta margem de liberdade para
escrever o que nunca foi dito e que é um novo, um dizer. Isso é caminhar
entre-duas-mortes, via do desejo – o que somos e também não somos, metonímia de
ser.
Se “a voz do herói não treme diante
de nada” (idem, p. 387) é porque ele recusa a paixão de saber da verdade que é
sua causa. O que o move é o sacrifício do bem para o desejo – que o ultrapassa;
sua libra de carne ofertada sem nenhum temor ou piedade. Avançar nesta direção
é ofertar-se como objeto do desejo pelo qual é preciso responsabilizar-se, sem
nenhuma recompensa.
A ética trágica, momento de
enunciação, legou à psicanálise o que deve ser de nossa responsabilidade: o
desejo. Mas um desejo prevenido de seus limites, como aponta Lacan. No limite
da ética da psicanálise está a política... Qual? A que faz valer o respeito à
diferença, condição que não se dobra à partilha de bens e que, portanto, não
cede à violência do homem pelo homem.
A violência sempre esteve presente
no humano; a arte sempre funcionou como o fiel da balança, fazendo o sujeito
retroceder em seu agir imediato e criar um objeto que mostre o que não se pode
ver; luzir da verdade por meio da matéria, como diria Hegel.
No que diz respeito à tragédia, “ela
não fala sobre o dilema secular a ser solucionado pela inovação racional, mas
das tendências permanentes da desumanidade e destruição no curso do mundo”
(STEINER, 2006, p. 166).
É ainda possível dizer que a arte, bem
como a psicanálise, pode funcionar como instrumento de reflexão para o que é do
humano? Eis aí uma questão que talvez fosse interessante levantar, dado que as
palavras têm sido utilizadas para banalizar o desejo, para servir a um senhor
insaciável que devora seus servos sem lhes franquear nenhuma margem de
liberdade.
Quando grandes artistas, escritores
e poetas se debruçam sobre sua arte, têm que se deparar com o fato de que
depois do século XX a cena do mundo teve que incluir a selvageria do homem,
aquilo que rompeu com a linguagem: o horror da destruição em massa, ocorrido
nas duas Grandes Guerras que nele tiveram lugar. Não foi por outra razão que
Freud, na Primeira Guerra, e Lacan, na Segunda, tiveram que incluir esses
desastres da humanidade em suas elaborações.
4
– ...por mares nunca dantes navegados!
“Um sonho, isso não introduz a
nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, isso se lê do que dele se
diz, e que poderá ir mais longe ao tomar seus equívocos no sentido mais
anagramático do termo” (LACAN, 1982, p. 129). Lacan nos oferece esta bela
reflexão para questionar o que pode ser o saber. Não o saber que se manifesta
no acúmulo de conhecimentos ao longo dos séculos, e que pode até sustentar o
homem no que ele descobriu por volta do século XVII como “sua razão”. Lacan se
alinha a Freud para dizer que o sonho é uma escrita, “nuvem de linguagem”
aberta a um gozo estranho ao saber. O objeto que satisfaria esse gozo está
sempre por vir porque nunca virá. Eis por que o sonho recomeça, a cada noite,
se alimentando de restos do dia, das falas vazias de sentido.
Quando o artista se debruça sobre
seu texto, reencontra a causa que o move, na dobradura que articula a noite com
o dia, o sonho com o despertar. Loucura do humano, o sonho só começa quando a
pessoa desperta:
“Primeira veladora: Ao
menos, como acabou o sonho?
Segunda
veladora: Não
acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo
sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que
eu chamo a minha vida?... [...] Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens
que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no,
porque mudam com tudo... Se eterno e belo há apenas o sonho... Por que estamos
nós falando ainda?...
Primeira
veladora: Não
sei... (olhando para o caixão em voz mais baixa) Por que é que se morre?
Segunda
veladora: Talvez
por não se sonhar bastante...
Primeira
veladora: É
possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida,
para que a morte nos esquecesse?...
Segunda
veladora: Não,
minha irmã, nada vale a pena...” (PESSOA, apud GAGLIARDI, 2010, p. 66-67)
“Terceira
veladora: (numa
voz muito lenta e apagada) Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há
gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos
crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia já. Vai
acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque
acreditais no sonho...” (idem, p. 68)
As três veladoras sonham acordadas
para não sucumbirem ao horror. Podemos pensar que nelas sonha o autor do texto,
dividido entre o que pensa e o que chega a dizer, entre enunciado e enunciação.
O
marinheiro é um fado de si mesmo, no qual Pessoa se lança em “mares nunca
d’antes navegados”. A literatura é sua casa e onde encontra abrigo contra o
mal-estar, onde ele é muitos e nenhum.
A escrita da peça remete a um
Portugal que havia sofrido grande humilhação com o ultimatum inglês de 1890, a proclamação da República em 1910 e a
tensão que vigorava na Europa, em 1913, antes da deflagração da Primeira Guerra
Mundial. Diante da perpetuação da prática de genocídios, da desumanização do
homem, é preciso se manter insone, para que o trágico ganhe função, honrando o
nome de seus heróis, como outrora nas belas planícies de Argos.
Referências
CALVINO,
Italo. Seis propostas para o próximo
milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FOUCAULT,
M. História da loucura. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
FREUD,
S. “Artigos sobre técnica”. In: ______. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1996, v. 12, p. 111-230.
GAGLIARDI,
Caio (Org.). Teatro do êxtase. São
Paulo: Hedra, 2010.
LACAN,
J. Seminário VII – A ética da psicanálise.
Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
______.
Seminário XX – Mais, ainda. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982.
KOHAN,
Silvia Adela. Escribir sobre uno mismo. Buenos Aires:
Alba Editorial e Proeme, 2005.
PESSOA,
F. Páginas de estética e de teoria e
crítica literária. 2 ed. Lisboa: Ática, 1973. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacindo do
Prado Coelho.
______.
(Bernardo Soares). Livro do desassossego.
Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1984.
STEINER,
George. A morte da tragédia. São
Paulo: Perspectiva, 2006.
VORSATZ, Ingrid. Antígona e a ética trágica da
psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.