segunda-feira, 22 de junho de 2015

segunda-feira, 11 de maio de 2015

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A vida é sonho, mesmo para marinheiros insones...


Teresa Palazzo Nazar




1 – A posição trágica frente ao ato

            Ao iniciar a leitura de um livro, lançamos mão do que muitos escritores nomeiam como “fé poética”, isto é, uma disposição à leitura, ato que demanda um distanciamento do que se passa na vida, uma entrega e confiança no escrito capaz de, durante certo tempo, conduzir por “mares nunca dantes navegados” aquele que a ele se entrega.
            Para muitos escritores, o que se repete ao início de uma leitura, como uma introdução, é o que pode capturar a atenção e a simpatia do leitor pelo texto. “O prazer da escrita desemboca no prazer da leitura” (KOHAN, 2005, p. 26).
            Em seus Escritos técnicos, Freud (1996) assinala que essa espécie de benevolência é, também, a disposição necessária à instalação da transferência em uma análise. Pois, afinal, falar para um estranho o que não se diz ao amigo mais íntimo não é exatamente fácil!
            É preciso haver uma pitada de entusiasmo do lado do analista, para insistir junto ao possível analisando que ele se deixe conduzir por suas associações, confiar no saber que se libera na fala endereçada àquele disposto a escutá-lo. Assim, é possível a instauração de uma cena distinta da vida cotidiana, parecida com a leitura inicial de um livro. O que organiza a montagem dessa cena é a colocação em ato do desejo inconsciente, ação regulada não por um saber preconcebido nem pela busca de um bem, mas pela razão ética na qual a motivação é a mesma que dois mil anos antes do advento da psicanálise, no século V a.C. fez surgir a tragédia ática. Pois a cena ática requer uma lógica de três: o ator, o coro e o público, o quarto elemento sendo o discurso que surge na voz do ator. Na estrutura do inconsciente, a mesma lógica é encontrada: real, simbólico, imaginário e o sinthoma.
O teatro grego não dizia respeito a um lazer para amenizar a dureza da vida e as exigências desta. O que estava em jogo era o ato. Por isso, Lacan vai se interessar pela tragédia grega na figura do herói trágico e, neste, o desejo capaz de movimentá-lo.  Freud também se interessou pela tragédia e pelo herói trágico, haja vista ter construído sobre o Édipo, de Sófocles, o fundamento da estrutura psíquica do neurótico. Para os gregos, a função desse tipo de teatro era criar uma consciência trágica, fazer advir o homem trágico que não pode ser subsumido ao cidadão grego, ao que desempenha uma ou mais funções na pólis. A função da tragédia é, sobretudo, estrutural, na medida em que pretende que o cidadão se veja em suas relações com o mundo, com seus pares, com os deuses, mas principalmente consigo mesmo e com seus atos.
            A função de uma psicanálise – levada até um fim possível – é franquear o acesso do sujeito ao seu desejo, sua ética. Seu ato é sua perda, já que se trata de se extrair do campo significante, como resto da operação, equivalendo-se ao objeto de sua causa. Por isso se diz que ao final da análise há uma cessão de objeto que é o próprio sujeito, resultado da operação analítica.
            Podemos, assim, começar a entender por que Lacan dá tanta importância à tragédia ática.
            A ética trágica coloca em questão o sujeito em sua perda, tal como a psicanálise.
            Trata-se de evidenciar a dimensão objetal do sujeito onde o desejo não é a causa final nem a primeira do ato que o inaugura, mas causa a posteriori, futuro anterior – o Nachtraglichkeit freudiano.
            Se um século depois de seu advento, a voz da tragédia foi calada por outro modo de pensamento – a filosofia –, a psicanálise recolocou essa voz em cena, a partir da descoberta do inconsciente, quando o sujeito é convocado como o herói trágico a se responsabilizar pelo que o determina (no herói, os desígnios dos deuses; na psicanálise, o desejo), sem fazer apelo ao saber.
            Para sair da posição dependente das demandas que advêm do lugar onde se encontra identificado e que lhe é desconhecido (posição paralisante), o sujeito terá que assumir a responsabilidade, solitária e intransferível, de seu ato. O que está aí implicado é a injunção de um desejo que responde a leis não escritas, evocadas por Antígona, a heroína trágica por excelência, pois ela é aquela que subverte as leis da pólis em nome das leis não escritas dos deuses (VORSATZ, 2013).
            Pelo que ela clama? Pela responsabilidade, a mesma que está tanto para o herói trágico quanto para a dimensão inconsciente, no que diz respeito à resposta dada ao impulso íntimo mobilizador do sujeito em seu ato e que o faz decidir e agir em nome de um desejo que se impõe como condição absoluta. Não é para todos, é verdade, mas quando esta contingência se apresenta, quando o sujeito faz valer, em ato, a ética que o mobiliza e que não é resultante de um saber a priori, conceitual, mas da opacidade oriunda de sua própria perda, é o trágico do “homem que não pensa com sua alma, mas com seus pés” que se põe em marcha, como disse Aristóteles.
            Desse ponto de não retorno, é a verdade que força passagem no campo do saber. Seu brilho mostra que o imperativo ético freudiano Wo Es war, soll Ich werden é o adágio que pode se mostrar quando o homem, diante do desamparo frente à morte, quando nem mesmo a angústia é recurso, lança-se ao ato de sua própria perda para sustentar o campo de onde vem.
            É nessa condição de resto extraído de sua própria experiência que um artista pode se lançar ao trabalho. Para criar uma obra é preciso deixar cair o que sabe, precipitar-se no abismo do vazio, quando uma verdade até então desconhecida poderá surgir. Nesse sentido, o artista é objeto de sua arte, já que ele não sabe o que o move, mesmo que conheça muito bem seu modo de fazer com sua obra. Ele sonha onde seu pensamento é pura ação, movimento que faz a extração de um objeto outro, distinto da natureza, criação. Pensamento que se transmuta em escrita, toda obra de arte é a assinatura de seu autor.
            O tempo do pensamento é fugaz! A vida, em sua transitoriedade, mostra-nos que o sonho de nossos pensamentos, nossas fantasias, o que e quem somos, tudo se apaga com nossa morte. Mas a cada vez que uma obra se produz, a cada transmissão operada com o advento de algo novo, o sonho renasce, mostrando não ser dependente do serviço dos bens, mas testemunho da presença do desejo que nele se mostra em ato. Para os sujeitos que não cedem às demandas, heróis de sua própria perda, a escrita é uma imposição ética. Escrever é abandonar a terra conhecida e deixar-se levar pelo dizer que brota nas entrelinhas, tal qual o conto interminável de Sheherazade.
            Diz-nos Italo Calvino:

“A arte que permite a Sheherazade salvar sua vida a cada noite está no saber encadear uma história a outra, interrompendo-a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo, uma forma de capturar o tempo que podemos reconhecer desde as suas origens: na poesia épica por causa da métrica do verso, na narração em prosa pelas diversas maneiras de manter aceso o desejo de se ouvir o resto. (CALVINO, 2012, p.51)

           
Literatura é, portanto, vida! E se ela se presta ao teatro, mais ainda, pois o que se escuta em ato, quando verdadeiramente há teatro, é a divisão subjetiva, eliminando as certezas do sujeito, levando-o a se perguntar: “mas não é esse o meu texto?” Não há luto que baste! Falar é fazer o luto do que se teria sido/tido. Mas não há como recuperar o que nunca se teve, nem nunca se terá...  questão de todo sujeito frente ao seu destino. Pois, para ser sujeito foi preciso pagar com seu ser. Trata-se de fazer o luto do lugar da “criança magnífica” aquela que teria sido no desejo dos pais.


2 – O Teatro do êxtase

            Fui achar em Fernando Pessoa, num livro que até então desconhecia, organizado por Gagliardi – Teatro do êxtase – os fundamentos para entender a dimensão trágica para o homem que olha seu tempo com certo distanciamento crítico, já que a loucura do humano existe em cada homem porque ele não se desgruda de si mesmo, como diz Foucault: “O apego a si próprio é o primeiro sinal de loucura, mas é porque o homem se apega a si próprio que ele aceita o erro como verdade, a mentira como sendo a realidade, a violência e a feiura como sendo a beleza e a justiça” (FOUCAULT, 1978, p. 24).
            Quando o homem se desprende da imagem de si mesmo, a palavra toma a cena, fazendo comparecer um discurso que lhe devolve a possibilidade de uma enunciação em ato, cerne da decisão trágica, dimensão também encontrada na experiência analítica.
            A peça O marinheiro mostra a clareza de Pessoa em relação ao que é, para ele, a única realidade, isto é, o teatro da vida. Mas se trata de um drama estático. Ou seja, um teatro que florescia no século XIX, no qual os diálogos eram apenas a preparação para os longos intervalos, longos silêncios, cuja encenação buscava um apelo fortemente simbólico. Resumindo brevemente, era um teatro inspirado na Antiguidade clássica, nas tragédias de Ésquilo, mas cujo protótipo de ação dramática encontra-se em Hamlet de Shakespeare.
            Em um manuscrito de 1914, um ano após ter escrito a peça, Pessoa nos diz:

“Chamo teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro. Creio que o é porque creio que o teatro tende a teatro meramente lírico e que o enredo do teatro é, não a ação nem a progressão e consequência da ação – mas, mais abrangente, a revelação das almas através das palavras trocadas e a criação de situações [...].
Pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momento de alma sem janelas ou portas para a realidade. (PESSOA, 1973, apud GAGLIARDI, 2010, p. 19)


            Essa reflexão se faz viva no texto de O marinheiro, e nos instiga a lembrar a questão levantada por Lacan no Seminário XX, onde ele se pergunta sobre “a relação que poderá haver entre a articulação que constitui a linguagem e um gozo que se revela ser a substância do pensamento [...] com o pensamento, se o considerarmos dominado antes de mais nada pela inércia da linguagem” (LACAN, 1982, p. 151).
            Vemos que a relação da linguagem com o que nela é deriva de gozo – Trieb, como diria Freud – só pode se mostrar nos intervalos dos ditos. É desses intervalos que se obtém o efeito poético porque nos leva a pensar com o corpo, pois é este que sofre o efeito do que se produz – isto é, o gozo.
            A peça é ambientada num quarto com três donzelas veladoras e um caixão sobre uma mesa, onde jaz outra donzela. O quarto tem o formato circular do palco grego, e nada indica em que época ou local a cena se passa. Sabe-se tratar-se de um castelo antigo, mas o drama é imemorial e a cena fora do tempo histórico.
            “Ainda não deu hora nenhuma” (PESSOA, apud GAGLIARD, 2010, p.51) é a primeira fala da primeira veladora. Ela exibe, de saída, o valor estático atemporal da cena. A morte é o centro do drama e as falas das veladoras, tal como Sheherazade, pretendem driblar a morte contando suas histórias:

“Segunda veladora: Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado – por que não falamos nós dele?

Primeira veladora: O passado não é senão um sonho... De resto, nem sei o que não é sonho. Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... O que é qualquer coisa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo como ela passa?” (idem, p. 54 e 55)

“Terceira veladora: O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre da feliz que eu fui!... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de viver, as pontas tranquilas dos meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos na água... Tinham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma razão para recordar...” (idem, p. 58 e 59)


                A peça se desenrola e nos mostra o autor resgatando do teatro grego a unidade de espaço e tempo, mesmo que pareça não fazê-lo, pois a ação dramática transcorre na torre de um castelo, durante uma madrugada. Ela também respeita a determinação de três personagens em cena... a quarta está morta. E o que está simbolicamente ali representado? Vemos que as veladoras são o espectro de uma única personagem conversando consigo mesma. E quem seria a morta? Podemos pensar tratar-se do próprio corpo desta personagem única, corpo habitado pela linguagem, que só tem vida quando animado pela fala.
            O marinheiro é o primeiro texto de Pessoa publicado na revista que inaugurou o modernismo em Portugal, Orpheu, e nos apresenta as dúvidas existenciais de seu autor, em sua incansável investigação sobre suas próprias emoções e pensamentos convertidos em arte.

“Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer de tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto meu próprio rosto que me contempla contemplá-lo.” (PESSOA/SOARES, 1984, p. 201)


            Para Fernando Pessoa, o “império dos poetas” viria salvar sua terra, Portugal. Os heterônimos vêm encher esta mesma terra de nomes que lhe faltam para a glória de sua poesia. Seu país, terra triste onde teria vivido uma infância penosa, com muitas perdas, é, também, para onde endereça seu olhar. Seus personagens levam-no a encontrar-se com sua própria autoria.
            Uma das veladoras sonha um sonho de marinheiro. A peça inclui um “sonho de um sonho”, criação da imaginação do poeta. O marinheiro que surge do sonho da segunda veladora permite, ao poeta, fazer da pátria sonhada uma ficção verdadeira em que “navegar é preciso, viver não é preciso”, como Pessoa dirá depois.



3 – Desejar é navegar...


O marinheiro não é apenas uma peça teatral. Com ela, o teatro da vida se apresenta como uma primeira e vigorosa tentativa de mostração do autor de como entender o que é, para ele, o teatro:

“Em O marinheiro, o teatro assume o estatuto de metáfora mais ampla do jogo ilusório a que se destina o conhecimento de categorias outrora transparentes, tornadas instáveis na modernidade: o autor e a personagem, a identidade e a alteridade, a ficção e a realidade.” (GAGLIARDI, 2010, p. 45)

mas eu acrescentaria a esta afirmação de Gagliardi que a peça cumpre sua função de teatro porque mostra o invisível: “a verdade e o acontecimento” (LACAN, 1988, p. 321). A verdade, sempre dita às meias, é o que comparece no ato do herói como o que ele não sabe, mas não pode recuar. Essa verdade, que é o dizer do discurso, é o acontecimento, o significante introduzido no mundo pelo ato de dizer.
Como explicar isso? Ora, como bem lembra Lacan, na tragédia não há exatamente um acontecimento:

“o herói e o que está a sua volta situam-se em relação ao ponto de visada do desejo. O que ocorre são desabamentos e amontoamentos de diversas camadas da presença dos heróis no tempo. É isso que fica indeterminado – no desabamento do castelo de cartas que a tragédia representa, uma coisa pode fixar-se antes de uma outra, e o que se reencontra no final quando se desvira o total pode apresentar-se de diversas maneiras.” (idem, ibidem)


Nesse movimento incessante da presença e apagamento da presença do herói há mostração de um lugar vazio, onde novamente a ação pode se dar. Mas que ação é essa? Trata-se do discurso. Só ele pode mostrar que a ação que faz valer a condição humana é o dizer. Este, ao mesmo tempo em que afirma a vida, lembra a presença da morte, pois só se está vivo naquilo que se diz.
O silêncio entre o que se diz e o que fica por dizer marca o ritmo da batida do que no significante permite que haja mundo e, neste, a cena na qual o homem se afirma sobre a natureza ao mesmo tempo em que se submete à sua condição de mortal. Como é possível dar-se conta, ascender à sua própria relação com a morte? Lacan responde:

“pela virtude do significante e sob a forma mais radical. É no significante, e uma vez que o sujeito articula uma cadeia significante, que ele sente de perto, que ele pode faltar à cadeia do que ele é [...] a função do belo sendo precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de nos indicá-lo somente num resplandecimento.” (idem, p. 354)


            O belo, que na Grécia antiga nasce com o teatro, na Idade Média reaparece no amor cortês, no Renascimento se mostra com a exaltação da figura humana e da natureza-morta, se repete no momento em que Freud inventa a psicanálise e extrai da arte o exemplo mais radical da função do significante: a existência do inconsciente.

“Freud é o primeiro a articular com audácia e potência que o único momento de gozo que o homem conhece encontra-se no lugar mesmo em que se produzem as fantasias, que representam para nós a mesma barreira em relação ao acesso a esse gozo, a barreira onde tudo é esquecido.” (idem, p. 358)


            Em O marinheiro, Fernando Pessoa nos lembra, através de suas personagens, que a vida só há pelo que se diz. A morte está sempre presente no centro do discurso, por isso, só há desamparo, nada é necessário além do dizer. Só por dizer algum êxtase pode ser tocado. O êxtase é imóvel, quer dizer, ele toma o corpo sem que nenhum movimento deste seja necessário. É uma pequena morte marcada no corpo, encontro de Dionísio e Hades.  
Essa experiência nos mostra o que Fernando Pessoa diz em seu teatro estático mas que poderíamos chamar de extático, já que inclui um êxtase do encontro com a palavra escrita. Pessoa nos faz lembrar que a vida é a presença da fala no corpo; é ela que nos faz vivos para o discurso, sonho de sermos o que pensamos.
            Pessoa nos indica o caminho do que é preciso escutar de nossa condição, isto é, que “a vida é sonho”, que a castração está no horizonte de nossa fala-ação, que não há felicidade alguma e que, ao final, está nossa perda, já que a vida depende de podermos dizer; entre cada palavra há um silêncio mortífero. Numa análise é preciso falar, ir até o umbigo do dizer, para dar-se conta de que não há a última palavra e que, portanto, é preciso renunciar a tudo saber. Nessa direção caminha toda e qualquer análise levada a termo. Não se pode ter a última palavra, assim como não se pode ser tudo para o outro. A castração preside a entrada do sujeito no campo da fala e da linguagem e, ao fim da análise, repete-se essa operação de perda, quando o sujeito se equivale ao objeto que é sua causa.   

“Será no mesmo nível que a fantasia do falo e a beleza da imagem humana têm seu lugar legítimo? Ou há, pelo contrário, entre eles uma imperceptível distinção, uma diferença irredutível? [...] no termo derradeiro, a aspiração do paciente se quebra numa nostalgia irredutível sobre isto, que o falo, de modo algum ele poderia sê-lo, e que para não o ser, ele só poderia tê-lo na condição do Penisneid na mulher, da castração no homem. Eis o que convém relembrar no momento em que o analista se encontra em posição de responder a quem lhe demanda a felicidade.” (idem, p. 359)


            Pode-se, então, entender por que o homem aceita os interditos de bom grado, pois eles, ao contrário de ameaça, são garantia de proteção contra o pior.
            A problemática do mal-estar na civilização apontada por Freud se apresenta pelo viés da instância moral do Supereu, isso que exige de nós os maiores sacrifícios, mas que não é, de fato, ameaça. O que o homem evita a todo custo é a responsabilidade sobre seu desejo e, na sequência desta vertente, o que nele é sua própria perda; ele prefere trair sua condição de sujeito, não quer ser o único responsável por seu desejo e pelo ato que o sustenta; prefere manter seus bens, os objetos de pequenos prazeres. Mas não há bem a ser encontrado, senão como trapaça!
            O que está no fundo da condição humana e que o homem evita a todo custo com suas idealizações, suas identificações, sua fixação no tempo do outro, é o que Freud nos apresenta quando fala do desamparo, Hilflosigkeit.            Ao dar-se conta de que não é possível esperar ajuda de ninguém para o que é responsabilidade de cada um sobre seu desejo, o sujeito toca o limite em que nem mesmo a angústia pode protegê-lo e, portanto, não há perigo no nível da experiência última, mas decisão!    
            Chegar ao limite em que se descortina o que se é e o que não se é, onde se mostra para que servem os bens que são as paixões e o que elas evitam, exige do sujeito que ele decida se quer o que deseja. Avançar aí é aceitar não apenas a solidão, mas o que se mostrou como vazio na via do desejo.
            Lacan nos indica, ao dizer que o herói trágico é aquele que “parte sem deixar rastros” (idem, p. 366), que ele só age porque incorporou a lei que o faz não-ser: me phynai quer dizer de preferência, não ser.

“Esta é a preferência na qual se deve terminar uma existência humana, a de Édipo, tão perfeitamente acabada que não é da morte de todos que ele morre, ou seja, de uma morte acidental, mas da morte verdadeira, em que ele mesmo risca seu ser. É uma maldição consentida, dessa verdadeira subsistência que é a do ser humano, subsistência na subtração dele mesmo da ordem do mundo. Essa atitude é bela, e como se diz no madrigal, duas vezes bela por ser bela.” (idem, p. 367)


            O passo a ser dado pelo herói é aquele do despojamento dos bens, do desinteresse pelo que é. Posição ética na qual a topologia do desejo se apresenta como vazio, sem fantasia, sem recurso, sem nenhum véu. Momento de liberdade para tomar sobre seu corpo o valor do ser-para-a-morte, inscrito no me phynai de Édipo.
            Lacan nos faz lembrar que estamos todos no mesmo ponto em que ele diz, com Freud, que a função do pai é ser pai morto. No entanto, o homem nada quer saber sobre isso. O que ele quer é o que ele menos deseja. Porque o que ele quer é, para o bem e para o mal, que um pai o garanta, que alguém sustente uma imagem que o proteja da verdade que ele teme. Renunciar aos bens e ao poder é assumir o que os antigos sabiam e nos deixaram como legado. Não é à toa que Homero e Tirésias são cegos... É para advertir-nos de que a fascinação da imagem nos ilude, nos aprisiona numa consistência de ser e, por isso, nos aparta da verdade, nos faz acreditar que não é preciso responsabilizar-se, que alguém “segura a barra” por nós. Esse é o caminho da culpa, onde nenhum bem pode proteger o sujeito das consequências de haver cedido em seu desejo:

“Fazer as coisas em nome do bem, e mais ainda em nome do bem do outro, eis o que está bem longe de nos abrigar não apenas da culpa, mas de todo tipo de catástrofes interiores. Em particular, isso não nos abriga certamente da neurose e de suas consequências. Se a análise tem um sentido, o desejo nada mais é do que aquilo que suporta o tema inconsciente, a articulação própria do que faz com que nos enraizemos num destino particular, o qual exige com insistência que a dívida seja paga, e ele torna a voltar, retorna e nos traz sempre de volta para uma certa trilha, para a trilha do que é propriamente nosso afazer.” (idem, p. 383)


            A trilha do desejo é nosso afazer, esse precipício entre o que se diz e o que fica por dizer, entre um significante e outro, curta margem de liberdade para escrever o que nunca foi dito e que é um novo, um dizer. Isso é caminhar entre-duas-mortes, via do desejo – o que somos e também não somos, metonímia de ser.
            Se “a voz do herói não treme diante de nada” (idem, p. 387) é porque ele recusa a paixão de saber da verdade que é sua causa. O que o move é o sacrifício do bem para o desejo – que o ultrapassa; sua libra de carne ofertada sem nenhum temor ou piedade. Avançar nesta direção é ofertar-se como objeto do desejo pelo qual é preciso responsabilizar-se, sem nenhuma recompensa.
            A ética trágica, momento de enunciação, legou à psicanálise o que deve ser de nossa responsabilidade: o desejo. Mas um desejo prevenido de seus limites, como aponta Lacan. No limite da ética da psicanálise está a política... Qual? A que faz valer o respeito à diferença, condição que não se dobra à partilha de bens e que, portanto, não cede à violência do homem pelo homem.
            A violência sempre esteve presente no humano; a arte sempre funcionou como o fiel da balança, fazendo o sujeito retroceder em seu agir imediato e criar um objeto que mostre o que não se pode ver; luzir da verdade por meio da matéria, como diria Hegel.
            No que diz respeito à tragédia, “ela não fala sobre o dilema secular a ser solucionado pela inovação racional, mas das tendências permanentes da desumanidade e destruição no curso do mundo” (STEINER, 2006, p. 166).            
É ainda possível dizer que a arte, bem como a psicanálise, pode funcionar como instrumento de reflexão para o que é do humano? Eis aí uma questão que talvez fosse interessante levantar, dado que as palavras têm sido utilizadas para banalizar o desejo, para servir a um senhor insaciável que devora seus servos sem lhes franquear nenhuma margem de liberdade.
            Quando grandes artistas, escritores e poetas se debruçam sobre sua arte, têm que se deparar com o fato de que depois do século XX a cena do mundo teve que incluir a selvageria do homem, aquilo que rompeu com a linguagem: o horror da destruição em massa, ocorrido nas duas Grandes Guerras que nele tiveram lugar. Não foi por outra razão que Freud, na Primeira Guerra, e Lacan, na Segunda, tiveram que incluir esses desastres da humanidade em suas elaborações.


4 – ...por mares nunca dantes navegados!

            “Um sonho, isso não introduz a nenhuma experiência insondável, a nenhuma mística, isso se lê do que dele se diz, e que poderá ir mais longe ao tomar seus equívocos no sentido mais anagramático do termo” (LACAN, 1982, p. 129). Lacan nos oferece esta bela reflexão para questionar o que pode ser o saber. Não o saber que se manifesta no acúmulo de conhecimentos ao longo dos séculos, e que pode até sustentar o homem no que ele descobriu por volta do século XVII como “sua razão”. Lacan se alinha a Freud para dizer que o sonho é uma escrita, “nuvem de linguagem” aberta a um gozo estranho ao saber. O objeto que satisfaria esse gozo está sempre por vir porque nunca virá. Eis por que o sonho recomeça, a cada noite, se alimentando de restos do dia, das falas vazias de sentido.
            Quando o artista se debruça sobre seu texto, reencontra a causa que o move, na dobradura que articula a noite com o dia, o sonho com o despertar. Loucura do humano, o sonho só começa quando a pessoa desperta:

Primeira veladora: Ao menos, como acabou o sonho?
Segunda veladora: Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?... [...] Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam provam-no, porque mudam com tudo... Se eterno e belo há apenas o sonho... Por que estamos nós falando ainda?...

Primeira veladora: Não sei... (olhando para o caixão em voz mais baixa) Por que é que se morre?

Segunda veladora: Talvez por não se sonhar bastante...

Primeira veladora: É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?...

Segunda veladora: Não, minha irmã, nada vale a pena...” (PESSOA, apud GAGLIARDI, 2010, p. 66-67)


“Terceira veladora: (numa voz muito lenta e apagada) Ah, é agora, é agora... Sim, acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho...” (idem, p. 68)


            As três veladoras sonham acordadas para não sucumbirem ao horror. Podemos pensar que nelas sonha o autor do texto, dividido entre o que pensa e o que chega a dizer, entre enunciado e enunciação.
            O marinheiro é um fado de si mesmo, no qual Pessoa se lança em “mares nunca d’antes navegados”. A literatura é sua casa e onde encontra abrigo contra o mal-estar, onde ele é muitos e nenhum.
            A escrita da peça remete a um Portugal que havia sofrido grande humilhação com o ultimatum inglês de 1890, a proclamação da República em 1910 e a tensão que vigorava na Europa, em 1913, antes da deflagração da Primeira Guerra Mundial. Diante da perpetuação da prática de genocídios, da desumanização do homem, é preciso se manter insone, para que o trágico ganhe função, honrando o nome de seus heróis, como outrora nas belas planícies de Argos.


Referências

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
FOUCAULT, M. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.
FREUD, S. “Artigos sobre técnica”. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 12, p. 111-230.
GAGLIARDI, Caio (Org.). Teatro do êxtase. São Paulo: Hedra, 2010.
LACAN, J. Seminário VII – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
______. Seminário XX – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
KOHAN, Silvia Adela. Escribir sobre uno mismo. Buenos Aires: Alba Editorial e Proeme, 2005.
PESSOA, F. Páginas de estética e de teoria e crítica literária. 2 ed. Lisboa: Ática, 1973. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacindo do Prado Coelho.
______. (Bernardo Soares). Livro do desassossego. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1984.
STEINER, George. A morte da tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2006.
VORSATZ, Ingrid. Antígona e a ética trágica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.


Os psicanalistas... ou a psicanálise posta à prova?



Teresa Palazzo Nazar
Psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ.
Delegada da ELP-RJ junto ao Movimento Convergência.



Falar do que nos ocupamos, às vezes por décadas e quase todos os dias, poderia ser tarefa enfadonha e rebarbativa. No entanto, o que nos move é a firme determinação em interrogar o desejo que anima cada psicanalista na direção do que é sua causa, isto é, a condução das análises e, se possível, suas finalizações.
                Ficar no campo da práxis da psicanálise tem a vantagem de não nos fazer escorregar nas especulações e suposições equivocadas sobre outras práticas. Ao mesmo tempo, coloca-nos frente ao rigor a ser mantido na realização da investigação pretendida, sem fazer leituras levianas e/ou correções indevidas.
                Nossa questão recai sobre a posição do psicanalista em seu ato – que evoca a posição de herói trágico – num mundo que decretou a morte da tragédia. Ao afirmar tal situação conflitante entre o que está no cerne do ato psicanalítico e a busca de felicidade e completude das demandas que nos chegam, não dizemos nada de novo. No entanto, se o discurso psicanalítico é aquele que instrumentaliza os outros e se sua eficácia depende do vigor e rigor daquilo que o fundamenta, vale interrogá-lo, primeiro, onde ele nasce, isto é, nas análises.
                Bem... não temos certeza do que se passa em uma psicanálise, só sabemos dos seus efeitos, inclusive dentro da própria comunidade psicanalítica. Se a questão é colocar à prova o que sustenta a descoberta freudiana, parece-nos importante trazer uma reflexão sobre a gravidade da perda desta dimensão tão singular, experimentada pelo inventor da psicanálise e repetida por Jacques Lacan. O desejo é trágico porque estamos prometidos à morte e porque, não importa o que façamos, nossa mísera existência está enraizada ao que se diz e ao que não diz... assim como as entrelinhas, entre um dito e o que fica por se dizer.
                A radicalidade do inconsciente, sua estranheza não domesticável, a impossibilidade de conciliá-lo com o que é dos campos da ciência, religião, filosofia, etc. – colocando-se como o que se atém à experiência da transferência no aqui e agora de cada sessão – impossibilita-nos de fazer uso de técnicas, diagnósticos preconcebidos a partir de manuais e toda uma infinidade de premissas já previstas em protocolos. Lugar do inesperado, da surpresa por excelência, o inconsciente obriga-nos a uma atenção curiosa, na qual o que interessa surge abruptamente e sem pedir licença.
                 Nossa tarefa é a de manter os fundamentos da psicanálise, tarefa difícil quando se pensa que isso implica não ceder às facilitações e/ou influências de tendências deformadoras, seja dentro ou fora da comunidade psicanalítica. Trata-se de assumir a responsabilidade de uma transmissão que se dá pelo viés do que se perde do saber constituído, radicalidade do inconsciente que não se diz, mas se manifesta em seus tropeços na fala e cujos efeitos incidem no discurso tecido no percurso da análise.
                Vejam: trata-se de andarmos na corda bamba! O saber inconsciente com o qual lida a psicanálise não é cumulativo, não pode se objetivar porque tende ao recalque, ao esquecimento, avança lentamente e está sujeito a recuos. Talvez, por isso, a formação dos psicanalistas não seja possível senão a partir do que se opera, sobretudo, em suas análises. Mas será que o que delas se extrai encontra eco na condução das análises das quais os psicanalistas se ocupam? Difícil de responder, dado que a experiência nos mostra que as análises, mesmo as que podemos dizer que são levadas longe o suficiente até esbarrar no afeto do ódio – este sim o mais difícil de transpor – evidenciam certa recusa em suportar a perda que lhes caberia como um fim possível.
                Tanto o ódio quanto a impossibilidade de normatizar o inconsciente ocuparão boa parte das reflexões, inclusive tardias, de Freud, sobretudo o que ele dirá em vários de seus textos ao se referir à barbárie.
                Quando, em 1915, ele nos fala da guerra, chama-nos a atenção para o fato de que o “estado civilizado” não é menos celeiro do ódio do que a guerra em si. A pulsão de morte está sempre presente, subvertendo e perturbando as inteligências mais elaboradas, em função da intensa atividade das moções pulsionais primevas. O que daí se mostra está articulado ao que do infantil permaneceu sem nome, selvagem, levando à passagem ao ato, diretamente, sem nenhuma mediação do discurso.
                Não seria necessário lembrar, mas fazemos absoluta questão de trazer esse pequeno recorte de Freud, no qual, já no fim da vida, em seu texto sobre Moisés e o monoteísmo, nos diz:

“Contudo, pode ser menos conhecido que a influência compulsiva mais forte surge de impressões que incidem na criança numa época em que teríamos de encarar seu aparelho psíquico como ainda não completamente receptivo [...] O que as crianças experimentaram na idade de dois anos e não compreenderam nunca precisa ser recordado por elas, exceto em sonhos; elas só podem vir a saber disso através do tratamento psicanalítico. Em alguma época posterior, entretanto, isso irromperá em sua vida com impulsos obsessivos, governará suas ações, decidirá de suas simpatias e antipatias e, com frequência, determinará sua escolha de um objeto amoroso, para a qual quase sempre é impossível encontrar uma base racional.” (FREUD, 2006, p. 140)

                Podemos, então, afirmar que os afetos enigmáticos governados pelo pulsional e presentes nas organizações sintomáticas vigoram, mesmo na dita vida civilizada, e podem muito bem aparecer em situações imprevisíveis, incontroláveis ética e/ou moralmente, anulando todo e qualquer pacto simbólico.
                É compreensível o porquê de Freud ter se preocupado em dizer, ao final de sua elaboração teórica, que o que se opera nessas situações é a lógica do vivo, discordante do que se deu no processo de estruturação e aprendizagem. Não há como negar que a tensão entre o pulsional e o necessário submetimento à ordem simbólica é gerador de pathos, pois a grande questão para os psicanalistas é como fazer com que os analisandos apreendam o que lhes cabe de seus ditos sintomas, isto é, o que neles há de incurável.
                Em 1929, no Mal-estar na civilização, Freud nos aponta os problemas que se intrometem nas psicanálises em curso, oriundos da vida orgânica e das formações do inconsciente, que se referem à construção do humano e que dialogam com o que Jacques Lacan, trinta anos depois, no seminário Ética da psicanálise (1959/1988) retomará para nos dizer, logo no início da apresentação do programa daquele seminário:

“Alguma coisa, certamente, deverá permanecer aberta no que se refere ao ponto que ocupamos na evolução da erótica e do tratamento a fornecer, não mais a fulano ou cicrano, mas à civilização e a seu mal-estar. Deveremos talvez fazer o luto de toda e qualquer inovação efetiva no âmbito da ética – e até certo ponto poder-se-ia dizer que algum sinal disso se encontra no fato de que não fomos nem mesmo capazes, após todo o nosso progresso teórico, de originar uma nova perversão. Mas seria, contudo, um sinal seguro de que chegamos verdadeiramente ao âmago do problema do tema das perversões existentes se conseguirmos aprofundar o papel econômico do masoquismo.” (LACAN, 1988, p. 25)
               
                Ora, a “infância” incurável de que nos fala Freud no Mal-estar e que Lacan aponta no início do seminário da Ética, quando afirma que não fomos capazes em nossas elaborações teóricas de originar uma nova per-versão, lembra-nos que o Supereu, herdeiro do Complexo de Édipo, não é suficiente para superar o ódio a si próprio. O mesmo que está presente na elaboração do texto freudiano Luto e melancolia, no qual, o ódio a si no outro, bem como o ódio ao outro em si, se apresentam de modo devastador, incorporado no psiquismo.
                Freud retoma as questões referentes à crueldade e à destruição do homem pelo homem em vários momentos de sua obra. Evoca o impulso mais arcaico, aquele que diz respeito à pulsão de morte não erotizada e que, portanto, resta como incurável no percurso civilizatório. Retomamos a pulsão de morte para lembrar o que Freud nos diz que funciona como puro batimento repetitivo, sozinho, e que diz respeito ao que não se submete ao progresso civilizatório. Aliás, o “progresso” é sempre uma questão que se apresenta aos psicanalistas, uma vez que caminha na contramão de suas experiências, o que levou Lacan a afirmar no Discurso de Roma que a religião e o exército certamente sobreviverão, mas a psicanálise... eis a questão! Seu objeto é a perda; como é possível levar alguém a aceitar perder, sobretudo seus ideais, num mundo cujo valor é o dos ganhos?! “O que pode uma psicanálise num tempo que deprime e inibe o sujeito justamente de fazer uso do dispositivo de fala que é por ela ofertado? É a depressão a vertente da impotência do sujeito frente ao impossível do estrutural melancólico e trágico do sujeito”.[1]

                Como sabemos,

“no luto e na melancolia é o Ideal do Eu que é abalado, sua sustentação é perdida, consequentemente há abalo no eu ideal, perda narcísica [...] a máscara imaginária familiar torna-se a imagem do duplo causando, ao invés de uma inquietante estranheza, uma profunda tristeza. Tristeza que faz parte da estrutura psíquica porque ela é a expressão da dor própria à existência [...]. A cada perda o sujeito é remetido à castração. A queda do Ideal faz emergir o vazio no campo do Outro.”[2]

o campo no qual o sujeito vai buscar as insígnias que lhe deem contorno e existência. Mas, se o traço contemporâneo é a insuportabilidade do vazio, a resposta que se observa é o recrudescimento da consistência das imagens idealizadas, dificultando o trabalho psicanalítico para desconstruí-las.
                Evidentemente, as análises dos psicanalistas também sofrem os efeitos da dificuldade em transpor a barreira dos ideais, talvez, por isso, muitas vezes eles se refugiam nos estudos teóricos e num suposto poder oferecido pela posição de “mestre”, para fazer consistir imaginariamente em suas defesas, contra a castração. Por esse motivo, pode-se hoje observar que alguns psicanalistas têm dificuldades de encontrar nas instituições e escolas de psicanálise, junto a seus pares, um refúgio contra o mal-estar, fazendo disso uma ‘base de operações’. Sendo possível uma transferência de trabalho, garantir-se-ia minimamente a sobrevivência do discurso psicanalítico. Além disso, ter-se-ia o discurso crivado por rivais à altura de fazê-lo, mas... ao contrário, eles preferem o conforto de estarem em outros “lugares” garantindo seus semblantes...
                De todo modo, o mais forte adversário da psicanálise não será encontrado em outros campos, mas sim no interior da comunidade psicanalítica. No Mal-estar, Freud nos diz que não é possível pensar em amor universal entre os homens – vide a intolerância oriunda das religiões em geral e da cristã, em especial, que perpetrou a barbárie contra os não convertidos. Assim, sucessivamente ao longo dos séculos, nas demais religiões, observa-se a dificuldade em tomar os “outros” como dignos de reconhecimento e respeito, quando se pensa que, para pertencer aos “mesmos” é preciso violentar, satisfazendo as pulsões de destruição. Economia psíquica que vigora mesmo no interior das comunidades e nos agrupamentos de psicanalistas nos quais aquele que se arrisca a questionar a doutrina, mesmo com fortes e bons argumentos, corre o risco de ser alijado.
                Coisa curiosa, pois nos parece que a interpretação mais importante da frase “wo es war soll Ich werden” (onde era “isso” o eu deve advir) é que uma psicanálise produza sujeitos, isto é, alguns “civilizados” que reconheçam as diferenças e as comemorem nas trocas simbólicas entre pares! Ora, para isso, é necessário fazer o luto do pai, do mestre, do educador, do professor, etc. Necessária queda dos ideais que, condensados no sintoma do neurótico, o impedem de abandonar a posição infantil, narcísica, que o emperra na relação com o semelhante.
                Seriam os próprios psicanalistas responsáveis pela enorme oposição e recusa que lhes fazem alguns campos outros do saber? Se a resposta for afirmativa, será que podemos pensar que isso se deve à enorme dificuldade, dentro da própria comunidade psicanalítica, em suportar o peso de seu objeto, isto é, a perda a mais radical, que é a do próprio sujeito, logo que surge? “O sujeito, como a faixa de Moebius, é o que desaparece no corte” (LACAN, 1965).

“‘Isso’ implica considerarmos que, para toda intervenção, para todo tratamento possível, há o real em jogo, ou seja, o impossível de harmonizar, de padronizar e de classificar. Dessa maneira, constatamos que, em todos os ensaios terapêuticos, a psicanálise chega como a ‘última da fila’, o que gera, em alguns psicanalistas, certo sentimento de fracasso.”[3]

                Sentimento com o qual terá de sustentar a eficácia de sua prática! Estranha posição do desejo do psicanalista, que opera como instrumento entre um discurso e outro, que comemora a perda de sentido e não o ganho, que tem como sucesso o fracasso e que não promete nada além de que, ao fim, está a morte!
                Não nos esqueçamos do fundador da psicanálise e dos ensinamentos que nos deixou, os quais, revisitados e até certo ponto subvertidos por J. Lacan, mostram que a herança a ser sustentada depende dos próprios psicanalistas e de suas posições em relação à transmissão, isto é, da disposição em reconhecer que não se inventa nada apagando o que vem antes ou suprimido o que brilha ao lado! Não seria esse o pagamento que não pode faltar àqueles que se reúnem nas escolas e instituições de psicanálise, ali pretendendo um refúgio contra o mal-estar e, ao mesmo tempo, uma base de operações?
“Sustentar seu lugar numa escola de psicanálise não é nada simples. Todos nós sabemos bem disso: as diferenças entre os pares, as nossas próprias críticas, nossas vaidades... ao se ‘pagar’ numa Escola, o que se vela e se revela do sujeito?”[4] Questão interessante que nos defronta com os limites da ação do discurso que é o nosso e recoloca a problemática do humano, que diz respeito ao indizível; por isso, é preciso entrar nessa “patota” acompanhado. Quer dizer, entra-se no humano acompanhado dos ancestrais, dos mortos, representações de uma perda original que funda todo e qualquer rito e, consequentemente, escreve o mito como origem secundária ao rito.
                Quando o convívio entre os psicanalistas se ritualiza, trazendo à cena o que do mito individual não foi analisado, um Supereu feroz impede o trabalho. O mesmo se dá quando se pretende fazer valer a doutrina (psicanalítica) no defrontar-se com outras áreas de produção de saber.
Claro, nessas situações é preciso fazer uso de boa política; não da politicagem, da barganha de poder, mas da política do desejo. Já avançamos o suficiente para sabermos que o desejo é, no ser humano, impensável... a não ser na relação com o significante e os efeitos que ali se inscrevem – mas será que os psicanalistas querem mesmo dar provas disso? Será que estão preparados para sustentar toda a virulência do ato psicanalítico, sem barganhar com o que se mostra como “mestrias do contemporâneo”? Será que aceitam pagar, dentro e fora da comunidade psicanalítica, com o que vai “ao coração do ser”?

Referências

FREUD, S. Moisés e o monoteísmo. Rio de Janeiro: Imago, 2006.
LACAN, J. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
LACAN, J. “Problemas cruciais para a psicanálise”. Inédito, aula de 10 de março de 1985.



[1] Contribuição textual de Ana Paula Gomes, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ e delegada da ELP-RJ junto ao Movimento Convergência.
[2] Contribuição textual de Flávia Chiapetta, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ.

[3] Contribuição textual de Fátima Amaral, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ e delegada da ELP-RJ junto ao Movimento Convergência.
[4] Contribuição textual de Lizete Dickstein, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Texto da Escola Lacaniana para o Congresso Internacional de Convergencia

O Texto, realizado para representar a Escola no Congresso de Madrid,será postado, brevemente neste blog. É bastante interessante, pois trata das dificuldades de convívio entre os analistas e as consequências disso na condução das análises.
Seminário sobre o trágico

Neste seminário, iniciado com Hamlet e Otelo, estamos trabalhando as quatro tragédias de Shakespeare. Vamos começar a falar de Rei Lear na próxima terça feira, dia 19 de maio. 
O seminário é aberto ao público.
Local: Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ, Av. Ataulfo de Paiva, 255 sl 206.
Horário: 20hs 
A vida é sonho, mesmo para marinheiros insones...


Este texto foi apresentado na Ciranda de Psicanálise do ano de 2014. Ele pretende ser uma reflexão sobre o destino do trágico na atualidade e, sobretudo, da morte do trágico. Que consequências podemos observar na perda do sentido da vida, da presença da morte, da banalização da barbárie, etc...





segunda-feira, 23 de março de 2015

Ciclo de Debates sobre "Crença e Fé na Atualidade"

Este ano começamos bem, dando início ao ciclo de debates na Livraria da Travessa do Shopping Leblon, recebendo como convidado o Babalawo Ivanir Santos, em janeiro. Em fevereiro foi a vez do rabino Nilton Bonder e semana passada, tivemos a oportunidade de receber o Imã Shiekh Jihad Hassan Hammadeh. 

No dia 17 de abril, receberemos o rabino ortodoxo Beutner e dia 29 de maio, estará conosco o Arcebispo do Rio de Janeiro Don Orani Tempesta.
A finalidade destas discussões é trazer a público uma reflexão sobre os caminhos das religiões e os questionamentos político, social, econômico e subjetivo do homem contemporâneo, à luz da psicanálise. 


Informações na secretaria da Escola Lacaniana De Psicanálise- RJ: 21-22949336
secretaria@escolalacaniana.com.br