quarta-feira, 24 de abril de 2019

quarta-feira, 13 de março de 2019

Surrealismo

A partir do dia  29 de março estaremos dando início ao grupo de trabalho sobre o Surrealismo, sob a coordenação de Emilia Lobato Lucindo, Maria Cecilia Bretas, Plinio Leite Jr., Teresa Palazzo Nazar.
Todas as sextas-feiras, de 17:00 às 18:00.
Entrada Franca
Inscrições : 21-22949336, email : secretaria@escolalacaniana.com.br

Surrealismo:


Surgido na década de 20, o Surrealismo foi um movimento profundamente influenciado pela psicanálise, uma resposta vigorosa ao horror da 1ª. Guerra Mundial.
Na década seguinte ao seu aparecimento, o movimento expandiu-se mundo afora influenciando todas as artes reunindo artistas oriundos, principalmente, do movimento dadaísta (surgido em 1916, em Zurique).
Entre as duas grandes guerras, a Europa apresentava o campo da cultura fraturado e o Movimento Surrealista, publicado em outubro de 1924 por André Breton marcou , não apenas o início de uma nova concepção artística, como sacudiu a política e os costumes conclamando os artistas ao resgate das emoções, ao reconhecimento da presença do inconsciente em todas as manifestações do humano.
 Nesse grupo de trabalho iremos analisar as influências desse movimento na psicanálise pós Freud, abordando as obras de seus principais representantes:
André Breton, Alberto Giacometti,Antonin Artaud, Salvador Dalí, Joan Miró, René Magritte, Max Ernest, Luís Buñuel, Paul Éluard, Louis Aragon e Jacques Prévert

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

A Tragédia Grega Antiga / O Percurso de uma Análise


BREVE COMENTÁRIO SOBRE A TRAGÉDIA E SEUS ENSINAMENTOS
ACERCA DA LIBERDADE DO HOMEM

Brief comment on tragedy and its teachings about the freedom of man



Teresa Palazzo Nazar

Médica, psicanalista, membro da Escola Lacaniana de Psicanálise-RJ
Celular e WhatsApp: ­­+55 21 995 69 61 48



Resumo
Abordam-se questões fundamentais para o entendimento do que há de semelhante entre o ato do herói trágico e a experiência de uma análise em sua finalização. Quais as implicações éticas e políticas envolvidas na relação do sujeito com a pólis e com seu pensamento crítico. O ato do herói, desafiando a própria morte para inscrever seu nome na imortalidade aproxima-se do ato psicanalítico ao final de uma análise, quando o sujeito abandona sua demanda de reconhecimento para responsabilizar-se por seu desejo. Quais as consequências em se saber da presença da morte, em considerar a efemeridade da vida nas relações com o semelhante e consigo mesmo? A significação tanto do ato do herói trágico quanto daquele que termina sua análise se mostra como o Até, ou seja, o limite do encontro inexorável com a angústia de castração, com a morte. Essas questões tão caras à relação do homem consigo mesmo e com seu semelhante devem pautar as ações do homem contemporâneo para que as próximas gerações tenham futuro e para que o campo da cultura avance na direção de uma nova HUMANIDADE.

Palavras-chave: Tragédia, inconsciente, ato, angústia, desejo, humano.

Abstract
Brief comment on tragedy and its teachings about the freedom of man. The text focuses on essential issues for the understanding of the similarities between the act of the tragic hero and the experience of psychoanalysis in its final stages. What are the ethical and political implications involved in the relationship of the subject with the Polis and with his critical thinking. The hero’s act, defying his own death in order to inscribe his name in immortality, approaches the psychoanalytic act in the final stages of an analysis. It is then that the subject gives up his demand for recognition to become responsible for his desire. What are the consequences of becoming aware of the presence of death, of considering the ephemerality of life in the relationships with the other and with the self? The significance of both the tragic hero’s act and that of the one who concludes his psychoanalysis appears as the Até – the boundary between the inevitable meeting with the castration anguish, with death. Such issues, which are so dear to the relationship of man with his self and with his fellow human beings must regulate the actions of the contemporary man so that the next generations might have a future and area of culture might advance towards a new HUMANITY.

Keywords: Tragedy, unconscious, act, anguish, desire, human.



Breve comentário sobre a tragédia e seus ensinamentos
acerca da liberdade do homem

“Há muitas coisas formidáveis no mundo,
mas não há nada mais formidável do que o homem”.
(Sófocles, Antígona, coro, verso 332, p. 332) (1)

“Para Claude Lévi-Strauss
o que o coro diz aqui do homem é, verdadeiramente,
a definição da cultura como oposta à natureza.”
(p. 332) (1)
           
           
Introdução
            O convite para escrever um dos artigos deste livro serviu-me como oportunidade para retomar meus textos sobre o trágico e sua relação com a psicanálise.
            Foi nessa perspectiva que me debrucei sobre alguns artigos escritos para diversas palestras, recolhendo deles os pontos principais para estabelecer a conexão entre essas quatro áreas de produção de saber – Psicanálise, Direito, Literatura e Artes – e confeccionar uma costura de assuntos tão diversos no rigor de suas especificidades, entretanto possíveis de dialogar entre si no que se refere às questões do humano, isto é, à dor de existir.
            Algumas anotações das aulas ministradas pelo querido Agostinho Ramalho Marques Neto, na Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro, serviram-me de bússola para escrever esse pequeno texto em sua homenagem. Tarefa nada fácil, tratando-se de um profundo conhecedor das “tragédias gregas” e do conceito ulterior – “o trágico”. Ao mesmo tempo, constituiu-se uma prazerosa ocasião para revisitar e rememorar no escrito seus preciosos ensinamentos, aqui compilados e mesclados com minha modesta interpretação do que escutei e pude pesquisar.
Se é com o que muitos escritores chamam de “fé poética” que se inicia a leitura de um livro, é com ela, também, que me lanço a escrever no tempo de tessitura desse escrito, deixando-me conduzir por “mares nunca dantes navegados”, já que o território da práxis do Direito me é totalmente desconhecido. De modo que apenas deixarei aqui algumas questões advindas da experiência clínica e teórica com a psicanálise e, certamente, algumas reflexões surgidas de meus estudos nos campos das artes e literatura, bem como daquilo que pude depreender das aulas de Agostinho a propósito do Direito na Grécia Antiga e seus ecos na contemporaneidade.
            Da cena do mundo cada campo de saber recorta seu quadro, imprimindo as imagens (acústicas e visuais) cujos elementos compõem a montagem de sua episteme e doxa, inventando sua práxis. Essa outra cena recortada da experiência de cada uma dessas áreas de saber é organizada pela colocação do desejo inconsciente em ato, trabalhando na filigrana dos discursos estabelecidos e sempre em movimento, ao longo do processo civilizatório e do estabelecimento dos pilares da cultura.
            É disso que este texto tem a pretensão de se ocupar e trazer alguma luz a partir do olhar dirigido ao homem em seus conflitos psíquicos e suas ações.
           
Da Grécia Antiga, alguns fugidios ecos
            Os gregos antigos tinham toda a razão quando pensaram seu teatro. Sim, para que houvesse ação era necessário usar da verdade e lançar mão de uma lógica quaternária: o ator, o coro, o público e o discurso emergente na voz do ator. Mimese do que ocorria na vida dos cidadãos, a cena trágica mostrava o que dizia respeito à estrutura subjetiva, isto é, uma divisão na qual, de um lado, havia os compromissos e deveres do homem grego para com a pólis e, de outro, suas demandas e o desconhecido de seu desejo.
            Assim, a tragédia era uma mostração, e ainda é, da verdade de cada um, da lógica do real, simbólico, imaginário e sinthoma que estrutura o pensamento inconsciente, sendo este último representado pela fala e discurso do ator. Pois, afinal, os gregos de ontem assim como cada um de nós eram atores no muito complexo palco da vida onde é encenada a miséria de uma existência voltada, inexoravelmente, para Hades!
            A morte sempre está com o homem como sombra indesejada e, se pensarmos no mundo antigo, a tragédia ática, que teve seu ápice no século V a.C., é memória em ato do que teria sido viver naqueles tempos. Rico ou pobre, cidadão da pólis ou escravo, o que dava o tom da realidade eram as guerras, as doenças. Entretanto, toda a precariedade do homem para lidar com as intempéries, as bruscas mudanças de poder impingindo perdas de todos os tipos, inclusive da própria vida, moldaram esse discurso sofisticado e exemplar para mostrar de que matéria, verdadeiramente, era feito o ato do herói trágico.
            Talvez por ser fascinante e assombroso ver e ouvir outro dizer de seus sentimentos mais secretos, da força que movimenta o herói em direção ao seu destino inexorável, de como esse destino estava traçado na linha da vida de cada um, expliquem a catarse produzida na plateia e, por que não dizer, a irrupção de uma verdade no ato do ator. Verdade essa que interessará à psicanálise, primeiro na teorização de Freud e depois na de Lacan.
            Freud tomou emprestado o Édipo de Sófocles para fundamentar a estruturação psíquica de todo neurótico. Porque, do mesmo modo que os gregos sabiam que era preciso criar uma consciência trágica em seus cidadãos, levando-os a perceber sua função na pólis, na relação com seus semelhantes e suas submissões à vontade dos deuses, Freud pretendeu arrancar o neurótico da condição de oprimido pelo próprio fantasma, franqueando-lhe, com a experiência de uma análise, o acesso ao desejo e à ética aí implícita. Daí, pôde surgir uma pequena margem de liberdade em relação aos preconceitos impostos pela “vida civilizada” e sua dívida de amor parental; amor este que aprisiona subjetivamente na medida em que estabelece uma relação de compromisso sempre desigual... pois um filho bem amado por seus pais adquire a dívida desse amor enigmático, assim como aquele que se vê abandonado tem a dívida de um desamor cujas razões lhe escapam.
            Portanto, mesmo se as finalidades fossem relativamente distintas na Grécia Antiga em relação à modernidade na qual vivia Freud, a função era (e ainda é) a de levar o sujeito a despertar do sono das demandas impostas pela cultura. Para sonhar e ter o protagonismo de um herói é preciso assumir o que se deseja. É necessário querer o que se deseja, enfrentando os fantasmas construídos para evitar a angústia de ser o único(a) a responder por seus atos. Além disso, a percepção do tragicômico da existência de cada um expõe a miséria do humano, tornando o sujeito consciente da fragilidade diante da morte, o seu “ser para a morte”.
            Entretanto, a luta de todo herói é a do sujeito em busca do “ser” que o habita. As velhas questões guardadas no inconsciente sobre de onde se vem e qual a finalidade da vida encontram, no herói trágico, uma resposta no destemor com a morte física e na exaltação do eternizar seu nome, pois viola os limites de Até (limite) para fazer valer seu desejo, isto é, ektos atas (passar dos limites). Passar do limite imposto pela mortalidade corporal implica a injunção de um desejo que ultrapassa as leis escritas na pólis, evocando a imortalidade dos deuses como outro modo simbólico de existir na memória das gerações vindouras.
Tal condição absoluta do desejo no herói trágico é, também, a que se espera daquele que se lança na tarefa de vasculhar seu inconsciente, cavando uma resposta na memória reconstruída através da experiência em dizer, na primeira pessoa do singular, em nome de quem/do que fala.
 Nenhuma dessas duas possibilidades é para todos, mas aquele que tem a coragem de fazer valer a ética do desejo que o move, que não teme a morte e a desafia para inscrever seu nome no Panteão dos imortais, faz da angústia o motor de seu ato, avançando onde muitos recuam. Assim, podemos dizer que é o trágico do “homem que não pensa com sua alma, mas com seus pés” que se coloca em marcha, como disse Aristóteles, fazendo com que trafegue por “mares dantes nunca navegados”, mas na certeza do destino tomado em seu ato, ponto sem retorno onde a verdade força a passagem no campo do saber, levando o sujeito rumo ao desconhecido.
Para além das demandas imaginárias (da pólis, do Outro) está o absoluto do desejo, trajetória do ato sem nenhuma conciliação. Por isso, o herói é aquele que atravessa a zona do entre-duas-mortes para ter acesso à liberdade de agir conforme sua condição de sujeito, assujeitado ao inexorável da morte.
O lamento do herói diz respeito ao fato de saber de sua humanidade, sua breve existência, sendo esse o sentido de Até. Pois as palavras dão vida e podem ser transmitidas a outrem, mas não podem dizer “a morte” que o herói grego não teme e que quer ultrapassar. É essa desmedida que será punida: seu erro de julgamento.
Por isso, a relação do desejo com o ato é mostrada na tragédia grega como um colapso – o herói encontrando na morte o limite que lhe cabe como mortal.
Do mesmo modo, o universo do inconsciente de cada um é impossível de ser abarcado pelas palavras, por melhores que sejam, pois elas recobrem com o sentido que carreiam o vazio do que não pode ser dito porque fora dos discursos. O brilho dos ditos é insuficiente para extinguir a opacidade do silêncio imperativo da morte, do que fica por se dizer. O Wo Es war, soll Ich werden freudiano soa como adágio ao desemparo de todo homem frente ao que resta inconsciente.
            O tempo do pensamento é fugaz! A vida, em sua transitoriedade, mostra-nos que nossos sonhos, nossas fantasias, o que e quem somos, tudo se apaga com nossa morte. Mas a cada vez que um sujeito tem a coragem de dizer seu nome, tecido nas dores e cores de sua experiência; a cada vez que se consegue ser ator/autor de sua “obra”, uma transmissão pode se efetuar. O sonho de grandeza de toda a humanidade é alcançar um patamar civilizatório no qual cada semelhante, em sua diferença, tenha a chance e o direito de escrever seu nome nas tábuas da posteridade.
            Essa imposição ética de ser responsável por seus atos e de entender que seu desejo termina onde encontra o de outrem talvez seja utópica, mas é na insistência em alcançá-la que é possível fazer parte, verdadeiramente, do processo civilizatório. A verdade de cada um está no escrever sua ética no livro comum da humanidade, abandonando a terra conhecida de seus preconceitos, suas dúvidas e dívidas para deixar-se levar pelo dizer das entrelinhas, brotando no inesperado, no súbito de um novo dizer, tal qual nos mostra o conto interminável de Sheherazade, como ressalta Calvino:

“A arte que permite a Sheherazade salvar sua vida a cada noite está no saber encadear uma história a outra, interrompendo-a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo, uma forma de capturar o tempo que podemos reconhecer desde as suas origens: na poesia épica por causa da métrica do verso, na narração em prosa pelas diversas maneiras de manter aceso o desejo de se ouvir o resto.” (p. 5) (2)

            Mas é na vida cotidiana, na qual o tempo é quase sempre desprezado em sua tarefa contínua de “mastigar” os acontecimentos relegando-os ao esquecimento, que se pode encontrar uma boa razão para transformar o irrisório ou improvável em algo de relevância ou motivo de entusiasmo. É o homem que toma em suas mãos a dimensão trágica de sua existência que pode olhar seu tempo com o distanciamento crítico necessário para ver, sem temer, o abismo de sua própria perda, para além de sua imagem. O teatro da vida, desfile de semblantes e máscaras coloridas e belas, foi matéria para a construção da arte trágica grega, essa arte que nos mostrou sobre a cena do mundo o que veio a se tornar uma antinomia da razão moderna, bem como sua solução, a fonte de litígio e de aporias da metafísica dogmática que ocupou os filósofos dos séculos XVIII e XIX.
            Possa eu interpretar essa força motriz da tragédia grega sobre o homem pensador da era da razão, direi que é a luta do homem para ultrapassar, no conflito de sua liberdade e nos limites de sua humanidade, a potência de um mundo objetivo que lhe exige respeitar o conjunto de leis que contrariam a Lei do desejo, na medida em que limitam sua liberdade de ação.
            O homem da tragédia grega não sucumbe sem combate, não aceita seu destino sem sobre ele agir, no uso de seu desejo de imortalidade, mesmo que a punição por sua desmedida já esteja sobredeterminada.

“A tragédia grega honraria a liberdade humana fazendo combater seus heróis contra a superpotência do destino; para não ultrapassar os limites de sua arte, ela teve que deixá-lo perecer; mas, para reparar também esse rebaixamento que a arte impusera à força a liberdade humana, ela deveria igualmente o fazer expiar – mesmo que por um crime perpetrado pelo destino [...] Era uma grande ideia tomar voluntariamente sobre si a punição, mesmo que por um crime inevitável, a fim de testemunhar, até na perda da liberdade, essa mesma liberdade e sucumbir proclamando sua vontade livre.” (p. 25) (3)

            O homem comum aceita seus interditos porque estes são a proteção contra o pior, entretanto, mesmo estando a eles submetidos, ele sonha com o excesso, uma liberdade sem amarras, sem os compromissos da vida partilhada com outros, a lhe impor restrições. Talvez por isso a tragédia grega provocasse catarse, esse arrebatamento que só a profunda identificação com o herói, no sentimento de concretizar no ato de um outro sua necessidade mais íntima de liberdade, permitindo a materialização de um combate pela luta do bem precioso que é o exercício de uma vontade potente de ultrapassar, pelo ato, os limites da vida na pólis, em direção à glória da eternidade.
            Essa condição ética de um desejo inquebrantável encontrou, no destino de punição por tal ousadia, seu limite. A pergunta que me coloco e que talvez seja interessante tentar responder não é o porquê de os gregos antigos terem valorizado por tanto tempo esse modo de mostração de uma verdade que lhes era comum, mas o motivo pelo qual os pensadores que ainda nos valem como referências, como Kant, Schelling, Hegel, Holderlin, e tantos outros, mais de vinte séculos depois debruçarem-se sobre essas obras para construir seus argumentos filosóficos.
Tanto Freud quanto Lacan sorveram dos gregos antigos e suas tragédias a matéria-prima para suas elucubrações sobre o funcionamento do inconsciente, delas fazendo o exemplo fundamental da estrutura psíquica, da ética do desejo, da função do Supereu e da culpa.
            Sobre isso, vale a pena uma reflexão mais aprofundada para entender algo sobre os tempos de hoje.

A morte da tragédia e o nascimento da política
            Pensar a tragédia grega antiga simplesmente como uma obra de arte já distanciada de nossa realidade é uma superficialidade e um erro. Pois ela é o primeiro tempo de um despertar para a vida subjetiva, para um além da ação física. Por ser o primeiro marco civilizatório, a encenação das tragédias mostra a força do desejo, das pulsões do homem e os limites impostos pelo convívio com o semelhante. Esses limites, muito além da objetividade, tocam a Lei de todo falante. Quer dizer, mesmo transgredindo eventualmente o código de leis da cidade, o homem civilizado deve saber que seus impulsos mais secretos não podem ser liberados. É preciso sublimar as pulsões para avançar no processo civilizatório. É necessário deixar a barbárie para tomar o semelhante como sagrado e lhe oferecer a palavra como via mediadora para as diferenças. Assim nasceu o discurso poético e, na sequência, o discurso filosófico e científico. Sim, porque foi preciso, inicialmente, cantar os feitos heroicos de sua brava existência para que o homem grego pudesse suportar o peso e a proximidade do real da morte.
            Há uma sensível diferença entre a filosofia e a arte dos poetas da Grécia Antiga. Platão julgou poder encerrar a importância do culto à tragédia em sua República. Entretanto, ao excluir o poeta trágico da pólis, Platão deixava empobrecida a capacidade reflexiva, a “teoria” sobre a função e o lugar do homem na cena do mundo.
            Aristóteles trouxe de volta, em sua Poética, a importância da arte e do discurso poético e fez coabitar arte e filosofia no seio da pólis, permitindo aos cidadãos o prazer de se identificar com o herói e, ao mesmo tempo, fornecendo o campo de reflexão, altamente político da ação deste e suas consequências.
            Aristóteles será retomado pelos filósofos do século XVIII e XIX, sobretudo Schelling, Hegel e Holderlin, que viam na reabilitação da poesia trágica um modo de pensar a política e a ética de seus contemporâneos. Por serem mortais, seus juízos, falhas, decisões equivocadas, paixões desmedidas eram sujeitos a punições tanto pelos deuses quanto pelos homens. Para eles, os poetas trágicos transmitiam a primeira ideia de limites no convívio com o semelhante, no compromisso ético com seus pares e a pólis e, finalmente, mostravam que havia fragilidade no agir, mas uma vida sem desafios era uma vida pobre, medíocre. Viver sem correr riscos era como querer uma vida pálida, sem o brilho do amor e da amizade... uma vida sem os outros, isenta de paixões, não poderia ser chamada de vida.
            Os espectadores atenienses aprendiam, de uma só vez e em cada exibição de tragédia, a importância do agir e dos negócios entre os cidadãos; observavam o lugar de cada um, seus deveres e direitos em meio ao pathos, à hybris e à catharsis.
            Platão havia privilegiado a teoria filosófica, mas Aristóteles demonstrou que a filosofia era falha porque baseada em seres divinos para ditar a medida justa dos homens, mortais e finitos. Assim, a teoria era incapaz de extrair dos conceitos de ética e política o que pretendia fundamentar, isto é, a verdade sobre o homem e sua ação.             Foi Aristóteles quem encontrou um modo de fazer os campos da arte e da filosofia não mais se oporem, e foi também ele quem mais influenciou, no “só-depois”, os filósofos que pensaram o agir moral e legal que até hoje nos influencia. Assim, por tratar do que é humano e do conflito entre o uso da liberdade e o compromisso com a vida na pólis, as tragédias puderam ser retomadas e analisadas à luz do mundo moderno ocidental. Esse mundo onde é perceptível a ausência da importância da ideia de destino; um mundo cuja crise evidente de valores marca o amanhecer de um novo tempo.
            Entretanto, há um “destino trágico” do qual a humanidade finge não saber. Trata-se de refletir sobre o passado para alcançar algo da verdade sobre o presente e, com isso, poder suportar o inexorável futuro que é a morte para todos.
            A transitoriedade da vida é, também, a garantia de que tudo se renova. E, talvez, nesse tempo fugaz em que todas as formas de vida se sustentam na graça de sua efemeridade possa o homem encontrar e aceitar o limite de sua liberdade de ação, respeitando os que o cercam, neles comemorando sua própria diferença. Na abordagem da natureza, de onde retira seu sustento, deve o homem lembrar-se de que as próximas gerações nela viverão, sendo hoje o momento de fazer as escolhas que irão determinar sua sobrevivência.
            O que foi a política e a ética para os pensadores e poetas da Grécia Antiga, o que ela se tornou no mundo moderno dos grandes filósofos do Iluminismo e suas consequências no mundo contemporâneo, no qual a psicanálise se mostra como ferramenta fundamental para o entendimento do funcionamento psíquico, pode nos fornecer uma chave para pensar algumas possibilidades de um futuro, no limite do encontro do homem com seu semelhante.
            Aquele que viveu e morreu como semelhante não poderia ser banido da Lei que regia sua condição de falante. É em nome dessa fraterna condição humana, do ser submetido às trocas simbólicas, que Antígona se mantém fiel ao irmão, limite entre o ser e o não-ser, ex nihilo nihil fit quando a linguagem impõe ao homem o corte fundamental que o torna vivo para o jogo “político” da vida subjetiva e da relação com os outros.
            Antígona diz isso, claramente, a Creonte, na “tradução”/interpretação de Lacan:

“Meu irmão, ele é tudo o que quiserdes, o criminoso, ele quis arruinar os muros da pátria, levar seus compatriotas em escravidão, ele conduziu os inimigos para os territórios da Cidade, mas enfim, ele é o que é, e o que está em questão é prestar-lhe as homenagens funerárias. Certamente não tem ele o mesmo direito do que o outro, vós podeis muito bem contar-me o que quiserdes, que um é o herói e o amigo, que o outro é o inimigo, mas eu respondo-vos que pouco me importa que isso não tenha o mesmo valor aqui embaixo. Para mim, essa ordem com a qual vós ousais intimidar-me não conta nada, pois, para mim, em todo caso, é meu irmão.” (p. 337) (1)
           
            Então, para essa heroína trágica, o valor da áthaptos é insubstituível, pois cada irmão é único em sua condição. Nem marido, nem filhos estão no mesmo campo onde o significante ligado ao pai estabelece sua Lei e reserva, a cada um dos filhos, seu lugar na descendência. Entretanto, a philia, termo tão importante para entendermos o que seria esperado dos laços entre os humanos, também está implícito na fala de Antígona.
            Amizade e amor, philia, amadurecimento e sabedoria do homem que reconhece o que pode significar para o semelhante a sua morte e por isso busca no espelho do semelhante a eternização de sua imagem e, no endereçamento da palavra ao outro, a garantia de se fazer lembrar na memória de quem o sucede.
            É esse valor da linguagem eternizada nos discursos circulantes que pode fazer face ao ultraje maior, ao ultrapassar os limites políticos e éticos que regem a pequena margem de liberdade de cada sujeito. Isso a psicanálise resgatou dos textos das tragédias, comparando-as com a dimensão trágica da própria experiência psicanalítica.
            Seria o objetivo maior de uma análise levada a termo fazer o sujeito reconhecer a efemeridade de sua própria existência, a solidão de cada um em seus pensamentos, seus sentimentos, sua vida e sua morte. Daí a importância em ter, no entusiasmo em fazer vigorar seu desejo, a exata medida do limite que lhe cabe.
            Quais as consequências éticas de se saber sobre o inconsciente? Qual a política que pode ser justa, inclusiva, e na qual o desejo de cada sujeito encontre lugar sem que o desejo do outro seja constrangido e/ou ultrajado?

Conclusão
Entender a função da tragédia na experiência de uma análise permitiu-me encontrar respostas para o que se passa no processo analítico, bem como entender as relações humanas tanto do ponto de vista político quanto ético.
 A descoberta do inconsciente conduziu Freud à cura dos sintomas de seus pacientes, mas não foi esse seu grande feito. Sua compreensão do sofrimento humano e das veredas dos sintomas fez com que o mestre de Viena extraísse da experiência da escuta algo transformador para as relações do homem consigo mesmo e com os que o cercam. Por ser afinado com seu tempo, pôde extrair dos resultados da clínica ensinamentos para a vida em sociedade. Sua preocupação foi também a de Lacan, sempre voltado para os problemas do homem com seu tempo.
A vida de cada sujeito reflete-­se nas relações em sociedade. Tudo o que não é elaborado retorna no real e é aí que podem acontecer grandes estragos subjetivos e objetivos, tanto na vida pessoal quanto na comunidade.
A dimensão trágica inerente ao percurso de uma análise é semelhante à experiência do herói trágico, na medida em que leva o sujeito a defrontar-se com sua própria perda, sua morte. Se o herói não pode fugir ao seu destino, é dele que terá que extrair sua verdade.
 Uma análise ensina a aceitar o limite do que se mostra como possibilidade de realizações em relação ao desejo; meu desejo termina onde começa o do outro, mas o importante é saber que esse limite do qual extraio minha potência ética e política não é uma verdade absoluta. Perder as ilusões, as quais desviam do caminho do desejo, é aceitar a castração como o que me permite conviver, compartilhar com os outros.
O universo das demandas cotidianas adormecem o homem para sua real tarefa de agir conforme seu desejo. Essa posição política e ética diante de si mesmo coloca-o frente à verdade que é a sua causa. Ao aceitar perder seu ser de natureza para se transmutar em um ser de palavras proíbe-lhe esquecer que este é o ato que lhe cabe.
Estar submetido ao campo da fala e da linguagem é renunciar à pura “pulsão de morte”, ao ato impulsivo de destruição. A dimensão do trágico está no fato de que todo homem está prometido à morte. É essa verdade que deveria pautar as relações entre os falantes, permitindo-lhes a compaixão pelo sofrimento comum de se estar de passagem com outros pela cena do mundo.

Referências
1.       CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
2.       LACAN, Jacques. A ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
3.       THIBODEAU, Martin. Hegel e a tragédia grega. São Paulo: É Realizações, 2015.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

texto enviado para o numero especial da revista D' Insistance, em homenagem à Alain Didier-Wiell

Abril de 1993, num dia qualquer...
Por recomendação de minha psicanalista Betty Milan, vou conversar com Alain Didier-Weill sobre psicanálise e arte e sobre o movimento psicanalítico na França. Estou sentada à varanda de uma simpática brasserie do 6éme arrondissement. Diante de mim aquele que se tornaria um querido amigo, colaborador e, por que não dizer, conselheiro em muitas situações difíceis.
Alain foi um grande psicanalista, contribuindo decisivamente para a minha formação e a de muitos outros da minha geração, e depois.
Inteligente, rigoroso, delicado nas intervenções, embora extremamente preciso no que se referia à teoria e à práxis psicanalítica, foi no entanto sua doçura e seu amor à arte que desde a primeira aproximação me encantaram.
Muitos encontros e jantares – em sua casa em Paris, ou na minha no Rio – permitiram que se estabelecesse uma verdadeira “transferência de trabalho” (pelo menos de minha parte!), o que fez florescer a amizade, a confiança e o respeito entre nós.
Numa dessas ocasiões sou surpreendida com um presente – um par de broches coloridos representando duas borboletas! Surpresa, pergunto a ele o significado e ele diz com os olhos apertados e num sorriso meio zombeteiro, meio cúmplice: “Ah, minha cara, você é mais uma encantadora e inquieta brasileira que estou tendo a alegria de conhecer! Aliás, você se parece em muitos aspectos com a Betty!”
Aceitei o lindo presente mas confesso que fiquei intrigada. Hoje, porém, tantos anos depois e quando não posso mais privar de sua presença, entendo um pouco o significado do regalo.... afinal, da lagarta à borboleta uma transmutação se opera e, convenhamos, são singelos o voo e a liberdade desses insetos multicolores que nos fazem sorrir! Alain Didier-Weill era assim: amoroso, inesperado e extremamente gentil com as mulheres!
Gosto de lembrar de nossas afinidades em relação sobretudo à literatura e ao teatro, o que me levou a indicar a publicação na Cia de Freud – cujo editor é meu marido, José Nazar – de seu primeiro livro sob sua chancela: A hora do chá na casa dos Pendlebury.
Depois disso foi largamente publicado no Brasil pela Zahar e Contra Capa, cabendo-nos a honra e a sorte de difundir seu pensamento no livro Invocações: Dioniso, Saint-Paul e Freud (Cia de Freud, 1999) e uma série de outros importantes nomes da psicanálise francesa por ele indicados.
O que pode ser uma transmissão quando se faz uma invocação ao Outro e este passa a ocupar um lugar de sideração? Invisibilidade indicada para além da imagem, “o espírito da música, enquanto inaudito (R/S) tem o poder de agir sobre a parte visível do corpo (I/R), extraindo de sua especularidade alguma coisa não especular” (p. 24). Assim, a invocação é uma pulsão fundamental, um terceiro invisível que permite a todo sujeito constituir-se a partir da transmissão da música na fala. Alain sustenta que é isso que humaniza o bebê e acompanha todo sujeito ao longo da vida.
Sem entrar na complexidade teórica feita em Invocações, posso dizer que a análise sobre essa especificidade pulsional forneceu as bases de toda a sua teorização sobre a importância das artes para o campo da psicanálise.
Em todos os seus textos encontramos a dimensão do humano, nunca uma teorização fria, distanciada de sua experiência de vida. Esta forma bastante singular de falar e escrever sobre a clínica psicanalítica, seu olhar perscrutador, sua profunda compreensão da dor de existir marcaram sua trajetória e angariaram, dentro e fora do campo da psicanálise, inúmeros discípulos e admiradores – dentre os quais, honrada, me incluo.